Contar “causos”, mais um talento do caipira

Uma das atividades que planejamos desenvolver neste blog, quando o idealizamos, está relacionada à prosa (trova) tão característica do nosso interiorzão. Ainda me lembro com muito carinho das histórias contadas por meu tio Romualdo - seu “Rumardo”, como se dizia lá - e de todo o ritual que estas encantadoras histórias ensejavam. A primeira parte deste ritual era o próprio ambiente, geralmente sentados em volta de um fogão de lenha, ele na sua cadeirinha de palha, pernas cruzadas e chapéu do lado, que na cozinha da Tia Eldócia não se entrava "de cobertura". A Tia “Dócia” dava seus pitos quando isto acontecia, por descuido dos chegantes, já que tio Rumardo já não esquecia. O chapéu caia automáticamente prá debaixo do braço assim que passava da soleira.


O primeiro ato daquele ritual era alisar, com seu inseparável canivete, uma palha de milho que ele tirava de alguma espiga do paiol, calmamente dando a forma do que viria a se transformar no seu cigarrinho. A palha soltando seu pó e a prosa começando a rolar, tudo uma preparação para o prazer do caminho e da conclusão que viria bem mais tarde. Os caipiras possuem aquele lirismo de "pintar" com as palavras todo os cenários, como que escrevendo um livro, fazendo a nossa imaginação viajar e montar um quadro lá dentro, que de tão rico em detalhes, estão até hoje guardados na memória. Da mesma forma, com a mesma riqueza de detalhes, eles pintavam as pessoas e as situações, muitas delas de uma graça e palavreado únicos. A cidade era São Bartolomeu, que todos da região chamam até hoje de “São Berto”.

As pessoas, bichos, coisas, assombrações, sacís (é acentuado assim mesmo prá dá o charme do sotaque), curupiras, mulas sem cabeça ou com cabeça, padres, prefeitos, pescadores, peixes entre outros entes eram presença constante nestes “causos” que faziam a gente ficar alí, ouvindo, vendo o fumo ser “deschavado”, enrolado, e a história só ia pros “finarmente” lá pelas várias baforadas. Tempo de crianças que pediam pros “Tios Rumardos contá uma história".

Aquele cafézinho de coador no bule de ferro ao lado era a senha prá mais um “paioso” e perfumava as histórias que ainda viriam, sempre causos “verídicos”.

Pois é, esta é uma das tradições que eu mais gosto de defender prá preservar, e conheço um montão de gente que tem isto no sangue como eu. É um constante recolher de “causos”, quase sempre divertidíssimos que nós entremeamos até hoje entre os “paiosos”, as cachacinhas, as modas de viola e a lua lá no céu confirmando tudo, que ela é a velha testemunha destes bons papos. Meus amigos Pena Branca, Oswaldinho Viana, Zé Paulo Medeiros, Lézinho da Paraíba, o mestre Rolando Boldrin são apenas alguns dos que até hoje fazem questão absoluta de preservar esta tradição.

No entanto tem um que marcou sua vida exclusivamente como contador de causos: Geraldinho Nogueira. Seu jeito simples e único de contar histórias por sí só já fazia rir o mais sério e mal humorado dos viventes. Há um raro registro do seu jeito único retirado de um registro gravado há 22 anos no programa Frutos da Terra, da TV Anhanguera (filiada da Globo) com a apresentação e “mediação” de Hamilton Carneiro. Entre um “causo” e outro modas de viola de raiz, prá dar uma folga no peito de tanto rir e respirar um pouco. Quem teve a oportunidade de ouvir esta peça rara sabe do que estou falando.


Infelizmente Geraldinho subiu fora do combinado prá contar suas histórias divertidas no céu, e quando cai muita água no sertão de sua terra Goiana, tenho certeza que são os anjos chorando de rir de seu “lereado”.

A história do próprio Geraldinho é digna de ser contada. Encontrado no início da década de 80 por Hamilton, ele era um roceiro de Bela Vista, sertão Goiano, um “rachadô da arueira”, “capinadô de roça” e “derrubadô de mata” (na definição do próprio Geraldinho). Hamilton rapidamente percebeu aquele talento natural e transformou em artista famoso aquele matuto, levando seus shows por este Brasil inteiro. Fez até comercial da antiga CAIXEGO (hoje Banco de Goiás). A gravação do disco só foi feita em 1984, ainda em vinil. Chegou à televisão no programa Som Brasil, comandado por Lima Duarte, apesar de ser completamente analfabeto. Sempre que lhe perguntavam se sabia escrever, a resposta vinha pronta: “minha caneta é a enxada na saroba”. Uma das suas marcas registradas era sua gargalhada, declaradamente imitada hoje por Saulo Laranjeira em um dos seus personagens mais famosos.

Com muita perseverança seu CD único pode ser garimpado, e vale a pena ser ouvido várias vezes. Vem acompanhado de um dicionário para que se possa compreender em toda plenitude aquele linguajar único e muito rico. Hamilton Carneiro promete que ainda irá publicar outros materiais, quem sabe até um DVD, com gravações que teria feito dos ensaios para o segundo show, que nunca ocorreu devido à sua morte precoce. Ficou uma tristeza, pois ele teimou de se “ajuntá” lá no céu com o Tio Rumardo e outros, prá mais um pito no paioso. Os anjos são mesmo felizes.

Giba da Viola – 16 de maio de 2007.

Adbox