Um caipira na galeria

Um dos andares do Espaço Pinacoteca (que não é no prédio da Pinacoteca do Estado*) abriga a coleção da Fundação José e Paulina Nemirovsky, com alguns trabalhos de José Antônio da Silva, entre outros. Eu nunca tinha visto os quadros de José Antônio da Silva antes, não tão de perto assim, não que eu me lembre. Me encantei. Tanto que resolvi montar aqui uma mostra deste artista caipira. Espero que gostem!
“Não admito que me chamem de primitivo, caipira ou ingênuo. Tem que me chamar de gênio. Já provei que sou”. “Há anos me chamam de gênio. Apenas endosso. Não tenho complexo de inferioridade”.
José Antônio da Silva (1909-1996), natural de Sales Oliveira, SP, tem uma trajetória especial. Artista caipira, dos legítimos, nunca brigou com sua origem. Como Cândido Portinari, saído do mesmo meio rural, e superando dificuldades, ele conseguiu levar seu trabalho para o exterior: tem obras até no Museu de Arte Moderna, o "MoMa", de Nova York.
Pela vida, mordia-lhe a dor do desapreço e da incompreensão. Foi pintor e escritor. Seus feitos pessoais e como artista o revelaram antena de nossa cultura de raízes. Criado na roça e filho de humildes meeiros, José Antônio chegou a Rio Preto bem jovem, a capinar em sítios e fazendas da região. Realizava o serviço que aparecia, de carroceiro a guarda-noites de hotéis. Já famoso em São Paulo na década de 1950, e por indicação do governador, lhe foi dado emprego na Prefeitura Municipal. Era o faxineiro da Biblioteca. Muito antes já havia criado uma pequena Galeria de Arte, em sua residência. Nem sabia o matuto da roça que estava criando o primeiro Museu de Arte em São José do Rio Preto. Desde criança sentiu inclinação para o desenho.
Rabiscava em superfícies improvisadas. Autodidata, corajoso, visionário e aventureiro, inventando os próprios meios, Silva barganhava pinturas por mantimentos, remédios e bugigangas; dava quadros em troca de receitas médicas. Semi-alfabetizado, e durante 10 anos, escreveu o Romance da Minha Vida, editado em 49 pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo. Publicou os versos de Sou Artista, Sou Poeta (81) e três outras narrativas romanceadas – Maria Clara (70, prefácio de Antônio Cândido), Alice (71, adaptada em 86 como a peça “Rosa de Cabriúna”, pelo Centro de Pesquisa Teatral do Sesc, direção de Márcia Medina, sob a supervisão de Antunes Filho) e Fazenda da Boa Esperança (87).

Não estranhava a mídia: em 1966, gravou um disco no qual, ao lado de dois curiosos depoimentos (Descoberta e Sofrimento do Artista e Como me Tornei Artista), incluiu diversas composições musicais de sua autoria, de títulos tão significativos como Encontro com a Cascavel, Encontro com o Lubisomem ou Dança de São Gonçalo, que bem explicam o seu mundo de idéias. Considerado por muitos críticos de arte como um dos mais importantes pintores brasileiros, Silva destaca-se como colorista espontâneo e sensível, e seus quadros, vazados num desenho ingênuo, obedecendo a uma ciência intuitiva da composição, recriam o meio rural paulista dentro de uma ótica autenticamente caipira.

“Pinto a lavoura
Também pinto as pastaria
Pinto a empregada e a patroa
Pinto a Joana e a Maria.

Pinto carroça e carreta
Pinto carro e carretão
Pinto o pedreiro na picareta
Pinto o colono no enxadão”

(em “Sou pintor, Sou poeta”, de 1982)

"Silva foi um Antônio; um José... tudo nome de gente simples, ordeira e cumpridora. Foi emblema político e gritante do sem-terra, do sem-teto, do sem-nada que venceu na vida. À moda dos artistas populares, e incorporando tardiamente um ardente romantismo, fez de sua existência, arte; de sua arte, vida. Era personagem de si mesmo, um rapsodo perdido em desejos. Materializou o mito do pertencimento à nação... ao caipirismo. Seu tino para a expressão crua da arte fez ecoar pelos quatro ventos as aspirações, devaneios, sentimentos e paixão que identificam a maioria esquecida e espezinhada do país. Seu primitivismo de cores desnorteantes – para os padrões chiques das “belas artes” – revigora arquétipos e símbolos elementares da existência coletiva. O artista parece a encarnação da voz do povo, pronunciada no dialeto esquecido pelas elites integradas. Seja em pintura, literatura ou no que lhe indicasse a prodigiosa inspiração, Silva se expressava – como poetizaria Manuel Bandeira em “Evocação do Recife” – na língua errada do povo, na língua certa do povo, pois ele é que fala gostoso o português do Brasil. José Antônio, ingênuo em muitos aspectos, foi sujeito sabido, despachado, instintivo, descomedido, espontâneo e previdente; foi singelamente culto – no sentido mais refinado que se dá a essa palavra. " (Romildo Sant'Anna)

Fazenda (1993)

Passeio de Jegue (1978)

Cavalgada (1977)
Fazendinha (1968)

Fazendinha (1957)

Algodoal (1950)

José Antônio da Silva morreu em São Paulo, em 1996. Quem quiser conhecer de perto esse trabalho tão importante, pode procurar o "Museu de Arte Primitivista José Antônio da Silva", que fica no Centro Cultural Professor Daud Jorge Simão, em São José do Rio Preto.
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* O Espaço Pinacoteca pertence à Pinacoteca do Estado. São prédios próximos, encravados no coração da Luz, entre eles, a estação. 1 real a mais na entrada de um dá direito à visitação dos dois prédios. Imperdíveis.
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