Há mais de trinta anos conheço o “Forró”. E ele mantém, quase intactas, as características com as quais o vi pela primeira vez, logo que cheguei aqui no Jabaquara. Esse mesmo Jabaquara, no passado um lugar ermo, distante, daí o topônimo tupi, com que os povos antigos o designavam: yâb-a-quar-a-, de significado aproximado para cafundós-do-judas (nada a ver com a Igreja com o nome do Santo!). Era uma região sem grandes rios, portanto, de circulação restrita, só tendo certa movimentação quando da abertura da estrada boiadeira que dava seqüência à Estrada da Conceição – atual Estação de metrô Conceição – e que seguia mais ou menos pela rota onde mais tarde seria a Rodovia dos Imigrantes. Com a abertura da boiadeira, foi construído o Sitio da Ressaca, no início do Séc. XVIII, lugar de pouso de tropas, ainda preservado e em bom estado dentro do complexo do Centro Cultural do Jabaquara.
Bem, o Jabaquara mudou um pouco nesses três séculos. Hoje está praticamente colado ao resto da cidade e até é considerado “região de fácil” acesso, em fragrante contraste com seu antigo nome: yâb-a-qua-ar, lugar ermo, longe. O distante bairro de Congonhas, onde construíram o Aeroporto, há muito tempo foi absolutamente cercado de residências.
Mudou o bairro, porém, o “Forró” continua o mesmo. O mesmo cabelo preto oleoso e encaracolado, a mesma barbicha preta, os dentes sempre estragados, o mesmo jeito soturno de ser, a mesma charrete, só o cavalo que de tempos em tempos muda de cor.... Chego até a desconfiar se não é o mesmo cavalo, apenas com cor diferente! É verdade que houve um tempo em que ele tentou substituir a charrete por uma velha camionete, mas, aparentemente o malogro foi completo. Esse bairro é repleto de subidas e descidas, algumas muito íngremes, e a velha camionete, com freios, embreagens e motor em estado lamentável, tornavam inviáveis as subidas e perigosíssimas as descidas, pois o freio de mão, igualmente deixava a desejar. Assim, o jeito foi voltar ao uso da velha, mas eficiente charrete, puxada pelo cavalo manso e resistente. O atual é um cavalo marrom-avermelhado, ferrado, cuja garbosidade, se não faz frente ao valente Murzelo Alazão de minha propriedade - com o qual ando por toda parte nesse Sertão Paulistano – pelo menos não faz feio.
“Forró” é o peixeiro do bairro. Duas ou três vezes por semana podemos vê-lo circulando por entre carros e ônibus, com sua singela buzina de plástico e metal, com a qual anuncia sua passagem oferecendo sardinhas frescas, às vezes tainhas, bagres, traíras. Tudo é simples e prático. Dentro de uma caixa de isopor, vão os peixes, entre pedras de gelo. À porta das casas, ante a solicitação da dona-da-casa, “Forró” pára, trava a charrete, pega sua velha balança de ferro, forra o prato com uma folha de jornal e ali são atirados os peixes de preferência da cliente. A aferição do peso é geralmente visual, mas o “Forró” é generoso e ninguém jamais se queixou de ter pagado valor acima do combinado, por conta de diferença no peso.... Feito o cálculo de peso e preço, o peixe é embrulhado no próprio jornal e entregue à feliz cliente que entra para preparar o peixe para o almoço ou jantar.
Como o bairro cresceu e a Avenida Engº Armando de Arruda foi alargada, em muito perdeu a característica de bairro residencial. Hoje, na verdade, é lugar de passagem, uma das ligações com o litoral e o ABCD. Muitos motoristas, que naturalmente não conhecem o “Forró”, se irritam quando se deparam com sua charrete e o cavalo marrom-avermelhado pelo caminho. Muitos xingam, cantando pneu ao arrancar. Mas o “Forró” segue imperturbável a vender seu peixe, indiferente aos gases que saem dos escapamentos, aos condomínios de apartamentos que se erguem, ao barulho dos aviões que seguem rumo ao aeroporto de Congonhas, poucos quilômetros adiante. Ele sequer nota as torres de celular que se erguem no bairro – a propósito, ele não tem celular!
"Forró” resiste ao tempo e aos modismos. Resiste aos grandes magazines – Pão-de-Açúcar, Wal-Mart, brevemente Carrefour. Nos fins de tarde, pode-se vê-lo conduzindo seu cavalo para comer generosos tufos de capim que crescem ao lado da Rodovia dos Imigrantes....
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SERVIÇO:
Centro Cultural do Jabaquara – Rua Arsênio Tavolieri, s/n, próximo a estação Jabaquara, do metrô. O Centro Cultural tem duas bibliotecas, um palco para shows.
A casa sede do Sítio da Ressaca foi construída em 1719, conforme atestam as inscrições nas telhas e na verga da porta principal. Localizada no caminho para Santo Amaro, a sua denominação é atribuída ao fato do sítio estar banhado pelo Córrego do Barreiro, também chamado Córrego do Ressaca. Tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional, manteve seu uso rural até 1969, quando o restante da área sofreu sua última desapropriação para a construção do Metrô. Em 1978, integrando o projeto de reurbanização da região, a casa começou a ser restaurada para que, em conjunto com um novo edifício, integrasse o Centro Cultural do Jabaquara. É desde 1990 sede do Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro, vinculado à Coordenadoria das Casas de Cultura da SMC. de construção, de aproximadamente 1765. (http://www.prodam.sp.gov.br/dph/museus/mucsitio.htm)