Para Ariano Suassuna
"Bem, passada a batalha com o Monstro do Lago Ness, - prossegue Zé Mangabeira - foi a vez de me enfiar por cavernas cheias de serepentes, escoropiões e outros bichos. E não é que uma Onça Parda, não quis meter-se a besta comigo? Pois é, trotava o Murzelo Alazão num começo de noite, eu de peixeira numa mão, punhal em outra, depois de ter encarado de uma só vez uma mula-sem-cabeça e um lobisomem, além de um Dragão da Maldade, que me apareceram de supetão, mal o Sol baixara no horizonte... mas, inté que foi um combate rápido, ligeiro! Liquidei-os com rápidas cuteladas simultâneas de punhal e peixeira! Ah, mas quando penso em respirar um cadiquin, não é que assim assim, sem mais nem menos, de trás de uma moita, não me surge a Onça Parda, arreganhando os dentes? Deu uns rosnados a bicha, mostrou as garras e as prêsas, mas bastou eu olhar feio pra ela se fazer entender que eu não estava pra brincadeira! Óxente, sua comedora de ratos, disse eu. Num vô é perder tempo contigo depois de ter enfrentado um lobisomen, uma mula-sem-cabeça e um Dragão da Maldade! Vai pra lá, gritei! Então, a bichana entendeu o recado e se acovardou, tratando de enfiar o rabo entre as pernas e ir pra toca lá dela!
" Mas não é que quando eu pensava que já tinha enfrentado todas as provas, quase que me acabo, rapaz? Fui pego desprevenido e foi aí que descobri que um Prinspe Herdeiro Cavalheiro Guerreiro deve é sempre andar preparado, olhos vigilantes e armas ao alcance da mão!...
“Lá pelo segundo mês de andanças e aventuras, vi um grande acampamento no meio do Planalto Central. Como minhas provisões estavam quase no fim, resolvi passar por lá, ver se negociava alguma coisa.... E entrei no acampamento, de peito aberto, saudando a todos aqueles e aquelas que seriam naturalmente meus súditos quando!...
“Tu não imaginas, moço! Fui parar no meio de um tal de Congresso de Profissionais não-sei-do-quê. Era congresso das minorias étnicas / culturais / raciais / sexuais / sociais / econômicas, etc. e tal. Eu, como sempre, nessas ocasiões oficiais, estava vestindo meu uniforme de gala, constituído de trajo completo de Vaqueiro, com perneiras, chapéu de couro, rabichola, gibão, guarda-peito, alpergatas, esporas. Aquele povão ali arreunido começou a discutir entre si sobre qual das minorias eu deveria pertencer. E rugiam, rugiam feio a meu redor, começando uma guerra entre eles, com direito a tapas, chutes e pontapés! Eu bem que tentei, gritando que eu era Prinspe Herdeiro do Brasil e que todos ali me deviam obediência, mas.... ninguém parecia me ouvir!...
Passávamos diante do conjunto de cinemas do Espaço Unibanco e meus olhos se detiveram num enorme cartaz com a foto de minha Musa, a Juliette Binoche, que me fitava com aqueles olhos melancólicos e tristes, meio pidões e me esqueci momentaneamente do Zé e da história que ele me contava.... Parecia que a danada me dava uma piscadela, com aquele sorriso zombeteiro e faceiro! Bem, fui acordado pelo Zé Mangabeira, que, ao que parece, notou que eu tava embasbacado diante do cartaz da Binoche e me deu um beliscão, chamando até a atenção de transeuntes.
“... Ei, até tu, cabra? Me respeita! Tu és meu Conselheiro para assuntos diversos e aleatórios, mas tem que ter limites essa tua gerência! Sou um Prinspe Herdeiro do trono do Brasil e não tenho que ficar preocupado em tu ficar incantado com um retrato! Era o que faltava! Tenho que me preocupar é com a inflação, o desemprego, a segurança do Reino, a educação do povo, a proteção dos desvalidos e das viúvas; sem esquecer as crianças abandonadas, a indústria, a agricultura, as estradas, os Portos, os Aeroportos, os....
“Bem, pra encurtar a história, vi que não tinha como conversar com aquela gente que não se entendia nem com ela mesma. Esporeei o Murzelo Alazão, mas o pobre estava mais assustado do que eu! Começou a tremer, a bater os artelhos, por fim deitou no chão e cobriu a cabeça com as patas, numa atitude deprimente para um alazão que conduzia um membro da Família Real Brasileira! Como eu me debatia muito, protestando, me amarraram a um tronco, perto de onde tinha uns caldeirões fervendo e fiquei seriamente desconfiado do destino que pretendiam me dar! Vixi! Será que me queriam mosqueado, ou à milanesa? Ou ao molho pardo? Ou cozido com batatas! Aiaiai! Meus sonhos monárquicos acabados assim, não era possível!
Tendo chegado ao fim da Rua Augusta, passávamos diante do conjunto de teatros, nos antigos Cines Bijou e Oscarito,, na Praça Roosevelt, onde, nos bares, um grupo de atores, todos provenientes do Grupo Sátyros, nos observava, olhos fitos no Zé. Bortolotto, copo na mão e rosto afogueado, olhou curioso para ele que, continuando a contar, fazia grandes gestos com os braços:
“... e na discussão entre eles, se esqueceram de mim !... E, eis que consegui escapar das amarras e fugir! Encontrei na beirada do acampamento o Murzelo Alazão que, ao me ver, levantou-se e pareceu disposto a mostrar que a tremedeira e o vexame que deu momentos antes, fora apenas um acidente! Montei-o e disparamos mundo afora! Mas, moço, perigo ali é que não faltava! Descobri que o raio daquela região ali do Planalto Central estava tomado por Congressos de toda ordem. E isso ainda não era nada! Um passarinho me contou que naquelas bandas existia um outro Congresso, esse permanente, e que, se eu caísse ali, estaria irreparavelmente danado para o resto dos tempos! E tinha um bichão chamado ONG, o desafio final, que devorava tudo o que passasse por perto dele! Ai, que apelei aos Anjos e Arcanjos.!
“Lembrei da Estrela-Guia, essa mesma que sempre nos socorre! Ouvi uma voz que me soprou no ouvido: "Feche os olhos e confia! Vou te conduzir para longe dos perigos!” Bem, lá fui eu! Cerrei os olhos!
“Desconfio que fui elevado aos ares, pois senti um ventinho frio na cara, que só podia ser das alturas! Deu até vontade de olhar, mas, recomendação de Anjo é coisa séria! Algum tempo depois, a mesma voz disse que podia abrir os olhos, pois estava salvo... Foi aí que desconfiei que tinha voado mesmo, pois o Murzelo Alazão estava todo empertigado, rinchando orgulhoso, como se tivesse acabado de realizar uma façanha! Segui caminho.
"Cheguei a um prado imenso, silencioso. Adiante, tinha umas figuras vestidas com grandes batas. Chegando mais perto, notei que eram Sete Anjos, armados cada um com espadas de fogo. Eles estavam em volta de um minúsculo arbusto, espadas flamejantes em riste! Eram os guardiães da Princesa do Cerrado, singela e frágil flor, dotada de imenso poder! Mas, eu estava decidido a ser o portador daquela preciosidade e tinha de continuar! Me aproximei daquele que parecia ser o Anjo Líder e expliquei-lhe que tinha ido buscar aquela flor...
"O Anjo Líder me encarou com aqueles olhos de fogo, assim ficou longos minutos, eu sustentando o olhar dele! Então, ele falou: "Só existe um Cavalheiro nesse mundo capaz de sustentar o meu olhar! É o Cavalheiro, Herdeiro do Império do Brasil, da Estirpe dos Mangabeiras, aquele que deve ser o Portador da Flor Símbolo da Nação para aquela que está destinada a ser a Rainha do Império, a Musa Verdadeira...
– Rainha do Império? Nossa, quer dizer que existe uma rainha do Brasil?
– Claro – respondeu o Anjo Líder. – Onde já se viu rei sem rainha?
– Mas... Posso, pelo menos, saber o nome de minha noiva?
– Ainda não lhe é dado a conhecer nem o nome, nem a face dela! Antes tens de mostrar serviço, caboclo! Primeiro, faça a sua parte, que é levar a Flor. Ah, e não se esqueça de que vais enfrentar na volta todos os perigos que enfrentaste na vinda.
– Todos os perigos? Os fossos, as serepentes, os escoropiões, os Congressos, as piranhas, os crocodilos, os jacarés, o lobisomem, a mula-sem-cabeça, o Dragão da Maldade, o Monstro do lago Ness, tudo aquilo?
– Sim! Talvez inté a ONG!
– Vixi!
– O que foi? Tá com medo?
– Medo? Eu? Ara! Mas, me conta mais sobre a Musa Verdadeira, pois, nem sei direito o que é musa, muito menos verdadeira...
- O quê? Quer dizer que não conheces a obra de Píndaro, o grande poeta grego? – o Anjo teve um sobressalto, saindo faíscas dos olhos.
- Píndaro? Me desculpe, sr. Anjo, mas, não tenho a menor idéia de quem seja o homem... – arrisquei-me a falar.
- Humfp! – o Anjo fez uma cara de impaciência – É por isso que esse Brasil não vai pra frente!....Eita povinho ignorante! Tá bom: vou lhe dizer em poucas palavras:
"Bem, conta-se que na Antiguidade, à época em que existia muitos deuses, e o Senhor ainda não havia vindo a Terra botar ordem nessa joça, lá no Olimpo, lugar onde os deuses habitavam, o maioral deles, um tal de Zeus achou que as coisas estavam muito monótonas e resolveu criar o nosso mundo, a Terra: fez os rios, as montanhas, os bichos, os homens... e ao homem, deu a capacidade de apreciar o vinho, doce de goiaba, pudim de côco, licor de jenipapo, pimenta, tapioca, pamonha e outras tantas guloseimas que fazem a vida mais gostosa de ser vivida!....
"Os outros deuses quando viram aquilo ficaram embasbacados! Imagine só! Eles, que estavam acostumados com harpas e liras e Coral de Anjos, de repente foram tolhidos por um fuzuê de arrepiar os cabelos, com mazurkas, tiranas, ponteados, reisados, folias, rasqueados, toadas, sambas, dobrados, chacarreras, martelos agalopados, frevos, cirandas, galopes-a-beira-mar, décimas-sextilhas-carretilhas, cocos, batuques, xotes, lundus, puluxias, excelências, incelenças, milongas, fandangos, xotes, congas, boleros, guajiras, chulas, baiões, xaxados, blues, baladas, maracatus., maxixes e tantos outros improvisos que naquele dia foi um alvoroço sem fim lá pros lados do Olimpo, como nunca se tinha visto antes! Uma festança de arrepiar e todos os deuses apreciaram as alegrias daqueles folguedos, achando aquele alvoroço todo, coisa bonita de se ver! Mas, foi então que algum dos Imortais lembrou que havia uma falha na criação de Zeus: faltavam as criaturas que "...louvem a beleza, que louvem a criação divina, pois, o Homem, a quem aquelas coisas eram destinadas, era um ser que esquece!" Zeus, no ato ergueu a mão e exclamou: " não seja por isso! Comigo é assim: mato a cobra e mostro o pau!" – hummm...o Anjo fez cara de muxoxo, coçando a cabeça - acho meio estranho Zeus falar nesses termos, mas.... prosseguimos a história! - E assim, Zeus criou as Musas, para sempre lembrarem ao Homem as centelhas da beleza divina...."
- Entendi, seu Anjo, mas e a Musa Verdadeira?
- Bem, como ouvistes, as Musas são criaturas míticas. Essa de que falo, a que habita um castelo incantado no cerrado brasileiro, é verdadeira porque existe de verdade, em seus encantos e nobreza e quiseram os deuses que ela seja a senhora dos pensamentos do Portador da Princesa do Cerrado, essa Flor que deverás conduzir! Por ela, Guerreiro, hás de vencer Dragões, Serpentes e Exércitos e também desfazer feitiços! Ela, a Princesa, a Musa Verdadeira, não tem par! Por ela, respirarás e viverás, pois será sua senhora exclusiva! Sendo, assim, única, a ela, unicamente cabe o epíteto de Musa Verdadeira....
Havendo contornado a Praça da República, descemos pela Barão de Itapetininga e fomos sair na Praça Ramos de Azevedo. Quando o Zé Mangabeira viu o suntuoso Teatro Municipal, arregalou os olhos, abriu os braços, quase atingindo a cara de um senhor vestindo um terno, que passava ali no momento, carregando uma maleta e gritava:
– Meu Palácio! Meu palácio! Aviai, amigo Conselheiro! Vamos tomar posse do Reino! – E, me arrastando pela mão, começamos a subir as escadarias do Teatro Municipal...
Naquele momento, na imensidão do cerrado brasileiro, uma menina índia, com seus longos e espessos cabelos pretos escorridos que deslizavam até a cintura, recolhia de um pequeno arbusto uma Princesa do Cerrado, prendendo-a no cabelo, junto a orelha. Subiu, então, a um pequeno murundú, ergueu os olhos para o céu, numa discreta reverência...
...e ao mesmo tempo, eu e Zé Mangabeira, subíamos as carreiras as escadarias do Teatro Municipal. Peguei, de graça, dois ingressos na Bilheteria, pois, por sorte, hoje é dia de música erudita grátis (vesperais líricas)...
[...]Enfreado à porta do castelo
Tenho meu murzelo ligeiro e alazão
Que em lidas sangrentas bateu mil mouros infiéis [...]
MELO, Elomar Figueira de. O Rapto de Joana do Tarugo.
Na Quadrada das Águas Perdidas, 1978.
Princesa do Cerrado
SERVIÇO:
Ariano Suassuna 80 anos: palestras, depoimentos, shows e filmes
Ariano Suassuna completou 80 anos de vida ativa em 16 de junho passado. O Memorial não podia deixar em branco a data, pois se trata do maior escritor brasileiro vivo, segundo diversos especialistas. O “Auto da Compadecida”, por exemplo, publicado em 1955, foi considerado pelo crítico Sábato Magaldi “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”. Atualmente, filmes e séries televisivas baseadas em sua obra, como a recente “A Pedra do Reino”, da Rede Globo, tornaram o escritor conhecido para o grande público.
Patrocinado pela Nossa Caixa, o evento "Ariano Suassuna, 80 anos - o local e o universal' acontece de 18 a 30 de setembro no Memorial, no Espaço Nossa Caixa Arte e Cultura e no Centro Cultural São Paulo. No Memorial, iniciando com uma
Na área musical, o Quarteto Pererê apresenta o espetáculo “Saci Armorial” (dia 28) e Antônio Nóbrega e quarteto encerram as homenagens com grande show no Auditório Simón Bolívar, no dia 30, às 20h30. Nos anos 70, Nóbrega integrou o Quinteto Armorial, criado por Suassuna, um dos mais importantes grupos a buscar uma música de câmara erudita brasileira de raízes populares.
Mais que um escritor, o dramaturgo, romancista, poeta e ensaísta é um agitador cultural. Idealizador do Movimento Armorial (que tem como objetivo criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do nordeste brasileiro, orientando para esse fim todas as expressões artísticas: música, dança, literatura, artes plásticas, teatro cinema e arquitetura, entre outras) sua influência se faz sentir na obra de artistas como Chico Science, Mestre Ambrósio, Lenine e Guel Arraes, entre outros. Gozando de pleno reconhecimento em vida, atualmente Ariano Suassuna desempenha pela segunda vez a função de Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco.
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