Para Dércio Marques
Foi assim: fui despertado pelo incrível barulho: gritos de desespero, de terror, de medo! Gritos de mulheres! Imediatamente salto de minha imobilidade, pois não existe nada mais impressionante do que gritos de donzelas em perigo, que nos faz renascer a saga e o destino dos cavalheiros deste mundo, que dentre tantos deveres, está em primeiro lugar, o livrar donzelas em perigo.
Peixeira em riste, o punhal cruzado, a garrucha de um tiro e “uma carreira” (assim se diz no interior das garruchas: carrega-as, dispara e corre para ter tempo de carregar de novo e defrontar o inimigo), calço as botinas e estou preparado para entrar em ação e cumprir a sina de defensor de donzelas em perigo. Porém, nesse meio tempo, pude assuntar algumas coisas e delas emitir breves conclusões: os sinais de perigo iminentes não tinham sido acionados corretamente ou talvez não tenham funcionado? Que sinais são esses? A exemplo do batman, tenho uma senha combinada com os responsáveis pela segurança dessa cidade. (quem assistiu aos filmes do homem-morcego, sabe do que falo: a imagem emitida através de um gigantesco holofote, com o sinal do Morcego.... no meu caso, tive de fazer algumas adaptações e meu sinal é um Chapéu de Cangaceiro. Na ausência do holofote, acertamos, que meu sinal seria emitido através do telefone celular ou na minha tela de computador. Aquele troço de holofote é coisa antiquada, do século passado...Sampa é moderna, cidade que une futuro e tradição... um holofote daqueles é um dispêndio de energia que não tem tamanho, uma geringoça... .além de outros inconvenientes, como por exemplo, onde instalar um holofote capaz de abranger todo o Sertão Paulistano! No Pico do Jaraguá? No Terraço Itália? No Edifício Martinelli? No Banespinha? E nos dias de chuva ou garoa, o sinal seria visível? São Paulo não é GothanCity, aquela cidadezinha fuleira, com aqueles bandidos que parecem saídos de uma Galeria de Horror ou de um circo...).
Bem,não tinha sinais nem no computador, nem no celular. Poderia, claro, ser uma falha em nossos sistemas de comunicação, mas, tenho um sistema alternativo de alerta e este, seguramente não falha: em sinal de perigo, meu cavalo, o Murzelo Alazão, simplesmente desaparece de vista e tenho de ficar procurando nas matas, nos campos e também em outros lugares menos dignos, como debaixo de camas ou com a cabeça enfiada na terra, como as cegonhas. No presente caso, dei uma olhada de soslaio na direção do Murzelo Alazão e o pangaré lá estava, firme, comendo sua porção de milho tranqüilamente. Em razão dos gritos das mulheres, apenas levantava as orelhas e sacudia a cauda, espantando mosquitos! Será que o Murzelo de uma hora para outra se tornou corajoso, indiferente aos perigos?
Fui até a janela e vi-me diante de uma cena assustadora: duas moças, minhas vizinhas, estavam ambas em cima de uma única e minúscula cadeira, no quintal no fundo da casa, gritando desvairadamente, o terror estampado nos rostos, agarradas uma na outra, apavoradas! Ao me verem, começaram a gritar ainda mais, apontando para um ponto no muro, de onde provinha a razão do terror. Olhei na direção do muro e nada vi! Que seria? Alguma assombração? Algum demônio invisível? Um endríago astuto, uma espécie de holograma ou outra feitiçaria cibernética? Estaria num cenário de Matrix? Que espécie de vilão teria de defrontar? Fiz sinal as damas que continuavam a gritar apavoradas, tentando entender o que se passava, e elas, em uníssono, apontavam, trêmulas, para o topo do muro, onde eu nada via! Nisso, duas cadelinhas saíram do interior da casa – pareciam estar dormindo e acordaram com o barulho – e seus latidos estridentes juntaram-se aos gritos das donzelas. Era uma zoada, uma tribuzana danada e temi que dali a segundos, toda a vizinhança, o bairro, a cidade, o país estaria a perguntar-se a origem de tamanho alarido. Já imaginei equipes de rádio e televisão, os sistemas interativos de leitores, ouvintes, telespectadores, blogueiros, todos ali nos arredores de minha casa a tentar decifrar o mistério e, conseqüentemente, toda uma série desconfortos que aquilo poderia trazer para o nosso bairro relativamente tranqüilo. Sem contar os Bombeiros, a Polícia, o Exército, a CIA, o FBI, até a extinta KGB, os Fuzileiros, o extinto DIP, o DOI-CODI, agentes da Operação Condor, a ABIN, a SWAT e, perigo maior!, aqueles intrometidos heróis enlatados – batmans, superman, x-man, spiderman, etc. – resolverem fazer nome e fama às nossas custas! Não! Eu precisava tomar uma resolução já e impedir a “invasão” ianque!
Tentei serenar os ânimos, procurando acalma-las e descobri que não era tarefa fácil. Acautelando-me, peixeira em punho e dedo no gatilho da garrucha, saltei para o campo aberto e finalmente descobri a razão do pânico: em cima do muro, uma minúscula lagartixa, olhinhos brilhantes, inquirindo com a cabecinha, sondando com a pequena língua bifurcada, a razão daquele barulho e aparentemente, tão assustada quanto as moçoilas. Só não gritava desesperada devido a ausência de cordas vocais adequadas!
Bem, era mesmo hora de resolver essa parada, evitar o vexame de ver chegar a SWAT, os Fuzileiros, os Bombeiros, a CIA, a ABIN, a KGB, o DIP, o DOI-CODI, o FBI, a NASA ou os heróis enlatados! Estufando o peito e assumindo a postura sobreira de Prinspe do Cangaço, dirigi-me às señoritas que gritavam apavoradas. Calmamente lhes disse que nada teriam a temer, pois era uma simples lagartixa. Fiz uso de meus bastos conhecimentos de biologia dos distantes anos de ginásio e lembrei-lhes que a lagartixa é um importante aliado nosso, podendo-se quase dizer que se trata de réptil doméstico: devora mosquitos, insetos, traças; é até capaz de atacar e devorar artrópodes, como aranhas e escorpiões! Não transmite doenças, pois não gosta de ambientes contaminados. Ah, e a lagartixa é bicho danado de esperto, pois, se estiver acuada por um predador, é capaz de “negociar” com o mesmo e “ceder” parte da cauda – que depois se regenera - preservando o pescoço e o resto do corpo....
Porém, de nada adiantava meus argumentos solidamente amparados em conhecimentos científicos. As donzelas continuavam gritando assustadas. Olhei o bichinho, seus olhinhos brilhantes e imaginei o que a coitada deveria estar pensando ao ouvir a gritaria – dizem que tem ouvidos aguçados!... O Murzelo continuava a mastigar sua ração, indiferente ao meu sufoco.
Então, deu-se um desfecho inesperado: desenrolou-se diante de meus olhos, o espantoso, o inacreditável! O pequeno réptil doméstico cresceu, agigantou-se, inflando como um balão e tornando-se um jacaré de tamanho desmesurado, um crocodilo, um sáurio gigante, um monstro saído das profundas!. Abriu a bocarra imensa disposta a engolir tudo à volta: as moças, as casas, a cidade inteira!... Não tardaria e as guarnições da CIA, do FBI, dos Bombeiros, da Polícia, do Exército, do DOI-CODI, da KGB, da ABIN, dos Fuzileiros e dos heróis enlatados seriam inúteis para conter a ameaça!
Tentando disfarçar meu nervosismo, prossegui meu discurso, tentando esclarecer a natureza da Lagartixa: nome inglês: gecko; nome científico: rhacodactylus leachianus ou gecko gecko ou ainda gecko smithi... Foi aí que percebi que as donzelas tinham se calado, talvez paralisadas pelo medo do gigantesco sáurio capaz de engolir tudo em torno. Pálidas, brancas como neve, agarradas em cima da cadeiras, olhavam estupefatas, olhos vidrados. Finalmente soltaram um suspiro de alívio e a cor voltou às suas faces e uma delas me dirigiu a palavra:
- Ainda bem! Graças ao senhor, o perigo se foi! – E olhei no muro, e nada havia mais ali, nem crocodilo, nem jacaré, nem lagartixa – que deve ter aproveitado uma pausa na gritaria para cair fora.
Tudo era paz nos nossos quintais, nas casas. Em algumas janelas distantes, brilhavam algumas luzes intermitentes. Alguns desses enfeites de Natal que brilham a noite e que alguém esqueceu de apagar ao amanhecer!
Então, voltei para dentro de casa, guardando as armas. Busquei minha cadeira de balanço e coloquei na vitrola o LP de Dércio Marques, o Anjos da Terra. Magicamente a agulha buscou a faixa: Lagartixa, versão de Dércio para a música de Ravi Shankar....
Vive caçando inseto todo dia
Corre do teto pra baixo da pia
Voa mosquito ele vai te engolir
Sai lagartixa daí!
Vive trepando nos muros, paredes
Acena o rabinho, apronta tramóias
Voa mosquito ela vai te engolir
Sai lagartixa daí!
Teia de aranha não dá nó!
Teia de aranha não emaranha!
Teia de aranha não dá nó!
(...)
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SERVIÇO: A música Lagartixa surgiu pela primeira vez no disco independente “Criança Faz Arte”, de Dercio e Doroty Marques, gravado ao vivo na cidade de Penápolis, no interior paulista. Posteriormente, essa faixa foi inclusa no LP – depois remasterizado para CD – Anjos da Terra.
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SERVIÇO: A música Lagartixa surgiu pela primeira vez no disco independente “Criança Faz Arte”, de Dercio e Doroty Marques, gravado ao vivo na cidade de Penápolis, no interior paulista. Posteriormente, essa faixa foi inclusa no LP – depois remasterizado para CD – Anjos da Terra.