Desde os primórdios da “civilização”, quando o ser humano foi capaz de registrar suas idéias e modos de pensar que, ao lado das tentativas racionais de entender o mundo, ao mesmo tempo se convive com outro mundo, o mundo mágico. Mas, o que viria a ser Magia? Ora, dentre muitas considerações a esse respeito que já ouvi de doutas bocas de especialistas calibrados e vastas sabedorias, ouvi dizer que se trata de um fenômeno que explica instantaneamente a “realidade”, sem outras ponderações. Ante a ausência de explicações lógicas, construímos magicamente o que nos escapa, o passado por exemplo, através da memória seletiva . Assim, alteramos o próprio presente, até o futuro.
Bem, estou a tecer essas profundas considerações na ausência de outras coisas para fazer ou pensar, pois estou cavalgando há horas o Murzelo Alazão na solidão incomensurável do Sertão paulistano e tem momentos que tudo é uma monotonia só e pra não ficar de calundú, a gente devaneia, filosofa entre os espaços. Aqui/ali, a rotina de filosofar tem pausas, quando sorvemos um gole de água de bica, quando aproveito para encher o cantil. Vez ou outra deparamos com uma vendinha de secos & molhados, onde sempre é possível molhar a goela com uma cerveja gelada...
Agora, nesse mesmo instantezinho que vos conto essas coisas, minha cachola fervilha de idéias. Estou indo para a casa de meu compadre Zé, pois se espalhou a notícia de que hoje por lá vai ter “baião-de-dois”, que a comadre vez ou outra costuma alternar com a tradicional macarronada de domingo.... já se sabe, “baião-de-dois” da comadre, ninguém dispensa por nada.
Na casa de meu compadre Zé, sempre tem novidades a se ouvir, além das rodas de contadores de causos, de violeiros e saraus. Então, se desliga a TV e acontece um fenômeno há muito desaparecido pelo resto do mundo afora: as pessoas voltam a se olhar, a prosear. E quando as pessoas se olham e se falam, sempre vem novidades, pois a televisão é aquilo de sempre, que se repete ad infinitum: as mesmas noticias de desastres, corrupção, etc., etc. Quando as pessoas se falam, além dos costumeiros comunicados de casamentos, batizados, churrascos, bailes, quermesses, etc., novidade sempre vem, trazida por algum malungo forasteiro de outras bandas. E foi assim na última vez que estive em casa de compadre Zé, chegou por lá Zé Mangabeira, um amigo nosso muito do altivo, que se diz descendente de reis. Desta feita, ele veio com uma conversa pra lá de esquisita, sobre uma nova moda adotada pelos povos chamados de avançados, que deixou todo mundo arrepiado! Ele nos falou de tal de “realidade virtual” (R.V.) e ficamos a tarde inteira tentando decifrar o que seria essa tal de R.V., que diacho seria aquilo, pois o que não faltou foram divergências.
“É e não é...” , começou o Zé Mangabeira e comadre Iara já se exasperou: “Mas, cuma é qui um trein pode ser e ao mesmo tempo não pode? Ixplica isso, homem de Deus, pois minha cachola não abarca tanto...” Zé Mangabeira ergueu os ombros, respirou e recomeçou: “Olha, é ansim: a tal de realidade virtual (R.V.) substitui com todas as vantagens a realidade mesquinha na qual a gente vive... – Zé respirou fundo, semicerrou os olhos, como se fizesse um esforço para enxergar mais longe e recomeçou: - Depois de tantas tentativas, parece que finalmente o ser humano conseguiu viver num mundo que se pode dizer “ideal”, onde tudo acontece de modo perfeito! Tem gente que inté namora virtualmente....” “Namora virtualmente? Oxi, homem de Deus! Valha-me Deus, pois isso é impossível!”, saltou comadre Iara, espantada. “Verdade – exclamou Zé Mangabeira, convicto. – Namora e namora mesmo, inté nos vâmo ver, funciona que é um perigo só! Teve gente que inté já ingravidô...” “Ara, que isso é conversa mole! Dêxa di sê mintiroso, homem!” – interveio compadre Zé, ao que Zé Mangabeira saltou no meio do salão, juntando as mãos, jurando pelos santos todos que existem. “Juro que é verdade! Me contaro, mi asseguraro e pelo qui pude apurá pelos relatos, foi isso mesmo!... o sêmen viajou pelo espaço cibernético e foi topá com o óvulo da minina lá do outro lado...” “Vixi!”, compadre Zé se benzeu. “Minha Nossa Sinhora da Abadia!”, fez coro comadre Iara.
“Amigos meus – Zé Mangabeira se fez solene – a realidade virtual chegou aqui no nosso sertão e nada será como antes. Alguém pode enriquecê ou ficá pobrezinho num instantezinho só! Alguém aperta um botão e milhões e milhões mudam de lugár de um lado a outro do mundo, o cofre de cá vazio e o outro cheio ou vice-versa. Mas isso é ainda muito do simples: casamentos se fazem e desfazem, gente aparece e desaparece, tudo virtualmente e tudo real, di verdade, ali no duro, com peso, cor, cheiros, tudo!
“Conversa fiada! – reagiu compadre Zé – Fantasia, lorota! Só doido pode acreditá numa asneira dessas! Gente di verdade resorve as coisas é ali, no téte-a-téte!
“Quem dera! – disse meio desanimado Zé Mangabeira – Com a realidade virtual, o mundo entra numa nova Era, onde tudo se pode controlar através de chips, satélites, o diabo-a-quatro! Passeios, despesas, conta bancária, eles controlam inté nossos passos, quantas horas a gente dorme, quantas vezes vai ao banheiro! Isso é tudo? Não, não é! O diacho da realidade virtual penetra nossas mentes e põe tudo a tona, todos os nossos desejos mais secretos e recônditos, tudo fica as escancaras! Tudo o que a gente pensar, pode ser mostrado – instintos assassinos, taras, safadezas, tudo! Agora já se pode mostrar que pensamento é pecado. Basta apertar o botão e o arquivo se abre e mostra lá o cabra no flagra, desejando a muié do próximo e outras incoveniências!
“Homi, mude o rumo dessa prosa, qui isso tá é mi dexano agoniado! – levantou-se muito vexado compadre Zé. De meu canto, entendi por que. Compadre é meu amigo e confidente e de homem pra homem já me segredou que tem uma vizinha muito gostosa, uma tentação, deixa qualquer um de cabeça virada, dá gosto ver, as mais belas pernas do sertão. E sabemos como é a comadre. Se ela sonhar com esses pensamentos dele, o compadre tá é lascado!
Isso, isso foi domingo passado, onde a prosa toda foi meio sombria, como se viu. Mas, parece que hoje as coisas serão diferentes. Já sinto o cheiro nada virtual do baião-de-dois. Vejo também o cavalo do Giba da Viola amarrado no mourão da frente. Quer dizer que hoje vamos ter roda de viola...
Bem, estou a tecer essas profundas considerações na ausência de outras coisas para fazer ou pensar, pois estou cavalgando há horas o Murzelo Alazão na solidão incomensurável do Sertão paulistano e tem momentos que tudo é uma monotonia só e pra não ficar de calundú, a gente devaneia, filosofa entre os espaços. Aqui/ali, a rotina de filosofar tem pausas, quando sorvemos um gole de água de bica, quando aproveito para encher o cantil. Vez ou outra deparamos com uma vendinha de secos & molhados, onde sempre é possível molhar a goela com uma cerveja gelada...
Agora, nesse mesmo instantezinho que vos conto essas coisas, minha cachola fervilha de idéias. Estou indo para a casa de meu compadre Zé, pois se espalhou a notícia de que hoje por lá vai ter “baião-de-dois”, que a comadre vez ou outra costuma alternar com a tradicional macarronada de domingo.... já se sabe, “baião-de-dois” da comadre, ninguém dispensa por nada.
Na casa de meu compadre Zé, sempre tem novidades a se ouvir, além das rodas de contadores de causos, de violeiros e saraus. Então, se desliga a TV e acontece um fenômeno há muito desaparecido pelo resto do mundo afora: as pessoas voltam a se olhar, a prosear. E quando as pessoas se olham e se falam, sempre vem novidades, pois a televisão é aquilo de sempre, que se repete ad infinitum: as mesmas noticias de desastres, corrupção, etc., etc. Quando as pessoas se falam, além dos costumeiros comunicados de casamentos, batizados, churrascos, bailes, quermesses, etc., novidade sempre vem, trazida por algum malungo forasteiro de outras bandas. E foi assim na última vez que estive em casa de compadre Zé, chegou por lá Zé Mangabeira, um amigo nosso muito do altivo, que se diz descendente de reis. Desta feita, ele veio com uma conversa pra lá de esquisita, sobre uma nova moda adotada pelos povos chamados de avançados, que deixou todo mundo arrepiado! Ele nos falou de tal de “realidade virtual” (R.V.) e ficamos a tarde inteira tentando decifrar o que seria essa tal de R.V., que diacho seria aquilo, pois o que não faltou foram divergências.
“É e não é...” , começou o Zé Mangabeira e comadre Iara já se exasperou: “Mas, cuma é qui um trein pode ser e ao mesmo tempo não pode? Ixplica isso, homem de Deus, pois minha cachola não abarca tanto...” Zé Mangabeira ergueu os ombros, respirou e recomeçou: “Olha, é ansim: a tal de realidade virtual (R.V.) substitui com todas as vantagens a realidade mesquinha na qual a gente vive... – Zé respirou fundo, semicerrou os olhos, como se fizesse um esforço para enxergar mais longe e recomeçou: - Depois de tantas tentativas, parece que finalmente o ser humano conseguiu viver num mundo que se pode dizer “ideal”, onde tudo acontece de modo perfeito! Tem gente que inté namora virtualmente....” “Namora virtualmente? Oxi, homem de Deus! Valha-me Deus, pois isso é impossível!”, saltou comadre Iara, espantada. “Verdade – exclamou Zé Mangabeira, convicto. – Namora e namora mesmo, inté nos vâmo ver, funciona que é um perigo só! Teve gente que inté já ingravidô...” “Ara, que isso é conversa mole! Dêxa di sê mintiroso, homem!” – interveio compadre Zé, ao que Zé Mangabeira saltou no meio do salão, juntando as mãos, jurando pelos santos todos que existem. “Juro que é verdade! Me contaro, mi asseguraro e pelo qui pude apurá pelos relatos, foi isso mesmo!... o sêmen viajou pelo espaço cibernético e foi topá com o óvulo da minina lá do outro lado...” “Vixi!”, compadre Zé se benzeu. “Minha Nossa Sinhora da Abadia!”, fez coro comadre Iara.
“Amigos meus – Zé Mangabeira se fez solene – a realidade virtual chegou aqui no nosso sertão e nada será como antes. Alguém pode enriquecê ou ficá pobrezinho num instantezinho só! Alguém aperta um botão e milhões e milhões mudam de lugár de um lado a outro do mundo, o cofre de cá vazio e o outro cheio ou vice-versa. Mas isso é ainda muito do simples: casamentos se fazem e desfazem, gente aparece e desaparece, tudo virtualmente e tudo real, di verdade, ali no duro, com peso, cor, cheiros, tudo!
“Conversa fiada! – reagiu compadre Zé – Fantasia, lorota! Só doido pode acreditá numa asneira dessas! Gente di verdade resorve as coisas é ali, no téte-a-téte!
“Quem dera! – disse meio desanimado Zé Mangabeira – Com a realidade virtual, o mundo entra numa nova Era, onde tudo se pode controlar através de chips, satélites, o diabo-a-quatro! Passeios, despesas, conta bancária, eles controlam inté nossos passos, quantas horas a gente dorme, quantas vezes vai ao banheiro! Isso é tudo? Não, não é! O diacho da realidade virtual penetra nossas mentes e põe tudo a tona, todos os nossos desejos mais secretos e recônditos, tudo fica as escancaras! Tudo o que a gente pensar, pode ser mostrado – instintos assassinos, taras, safadezas, tudo! Agora já se pode mostrar que pensamento é pecado. Basta apertar o botão e o arquivo se abre e mostra lá o cabra no flagra, desejando a muié do próximo e outras incoveniências!
“Homi, mude o rumo dessa prosa, qui isso tá é mi dexano agoniado! – levantou-se muito vexado compadre Zé. De meu canto, entendi por que. Compadre é meu amigo e confidente e de homem pra homem já me segredou que tem uma vizinha muito gostosa, uma tentação, deixa qualquer um de cabeça virada, dá gosto ver, as mais belas pernas do sertão. E sabemos como é a comadre. Se ela sonhar com esses pensamentos dele, o compadre tá é lascado!
Isso, isso foi domingo passado, onde a prosa toda foi meio sombria, como se viu. Mas, parece que hoje as coisas serão diferentes. Já sinto o cheiro nada virtual do baião-de-dois. Vejo também o cavalo do Giba da Viola amarrado no mourão da frente. Quer dizer que hoje vamos ter roda de viola...