Com as mãos trêmulas – era um disco famoso, que todos comentavam e ninguém o tinha, poucos tinham ouvido – coloquei na minha velha vitrola e me deleitei com verdadeiros tesouros de nossa música: Natureza, toada brejeira de Dino Franco [tem cd aqui], com a famosa Orquestra de Violeiros de Osasco; Arrumação, de Elomar; uma magnífica versão de Tonta (Companheiro, me ajude/ Eu não posso cantar só!/ Eu sozinho canto bem, com você canto mió...), de “seo” Chico de Ubatuba; Leito do Gavião, impressionante introdução para Chula no Terreiro, também de Elomar; as cantigas infantis Era Uma Vez e entre outras obras primas, uma dolente cançoneta que soava perfeita na voz no eterno-menino Dércio: Cantiga de Embalar, de um misterioso – para mim – compositor português de nome José Afonso.
A principio passou meio despercebido, mas depois verifiquei que esse português circulava entre outros artistas brasileiros com certa desenvoltura: Diana Pequeno gravara dele Rio Largo di Profundis e Se o Amor Não Me Engana. O próprio Dércio registraria in loco um trecho de “Maravilha, Maravilha”, na voz de Pedrinho Afonso, extraído do disco Enquanto Há Força. Mas, quem era mesmo esse português? Não era fácil encontrar material sobre ele. Parece que apenas os iniciados sabiam alguma coisa, além de um pequeno nicho do meio musical, onde estavam gente como Dércio e Diana.
A muito custo encontrei num sebo o LP Que Venham Mais Cinco, em muito bom estado, ao mesmo tempo em que encontrava pessoas que sabiam algo dele... Qual não foi meu espanto quando descobri que aquela voz doce e frágil pertencia a um ativo e – de certo modo – incendiário simpatizante do PCP (Partido Comunista Português). Era oficialmente apenas “simpatizante”, pois nunca quis se filiar, ao contrário do amigo também cantor e compositor Adriano Correia de Oliveira.) Os comunistas brasileiros falavam dele com reverencia e respeito – na música Alípio de Freitas ele fez uma única referencia ao Brasil, às Ligas Camponesas e ao líder Francisco Julião.... Meu amigo e colega universitário, grande colecionador de música de todos os gêneros, o Agnaldo Mori, ex-militante do Partidão, dizia com orgulho que eu precisava algum dia ouvir Vila Morena, a música que foi escolhida como senha para os tanques do exército português saírem às ruas, aos 20 minutos do distante 25 de abril de 1974.... (Por essa época, eu e meus pais deixávamos o sertão caipira, lá no Pontal, para nos aventurarmos no sertão paulistano, onde mil aventuras me aguardavam, montado na sela do meu Murzelo Alazão, anos depois...)
A música desse português, José Afonso, o Zeca, é assim, capaz de embalar crianças de colo e também fazer tanques de guerra rolarem pelas ruas e derrubar ditaduras. Tem um caráter universal e talvez por isso ressoa tão bem nos sertões de nossas almas e por muitos outros rincões. Por toda parte, onde exista opressão, lá está a música e a atitude do Zeca, inquietando, mesmo 20 anos depois de seu desaparecimento físico. Existe entre sua obra e a cultura brasileira algo que soa além dos lugares-comuns, dos clichês tipo país-irmão, língua-madre, essas coisas. Era um artista que não negava suas origens ibéricas e igualmente mergulhava fundo nos ritmos africanos e tinha um olhar e ouvidos argutos, sempre buscando ver algo novo no horizonte tanto em termos musicais como a valoração da Fraternidade entre os povos, na qual ele acreditava piamente.
A disseminação da técnica permite-nos hoje em dia ter acesso a quase totalidade de sua obra. Entre a avassaladora quantidade de informações atualmente à nossa disposição, vale a pena debruçarmos-nos um pouco sobre sua obra. Katya Teixeira gravou Alegria da Criação e Adeus Ó Serra da Lapa no seu segundo CD, o Lira do Povo. Recentemente tive o privilégio de vê-la cantar lá no SESC Santana, dentro do projeto “Feitas Por Nós”, As Sete Mulheres do Minho, com singela energia e beleza que certamente obteria a aprovação do Zeca, auto-acompanhada de viola-de-cocho – um instrumento que um amigo português, o Alexandre, jura ser de origem portuguesa, pois, segundo ele, tem afinação semelhante à viola braguesa.
Violas-de-cocho, violas-braguesas, fados, modinhas, lundus, rimances ou romances medievais: A Nau Catarineta, versos recolhidos por Suassuna [livros aqui] no nordeste e que Antonio Nóbrega brilhantemente musicou e gravou, tem suas origens na região do Algarve. Senhora Rainha, bela e vigorosa gravação do Lira do Povo, com Kátya e mestre Zé da Ernestina, igualmente tem ecos lusitanos. Outros exemplos se multiplicam, como a gravação de Ana Salvagni para Macelada... Nosso abraço, portanto, aos caros murrugas, ao português da padaria do Zeca Baleiro, que nos ajudaram em algo mais que a simples transplantação da língua: sua cultura igualmente mestiça – mouros, judeus, etc. – por aqui encontrou eco e solo fértil nos nossos sertões....
Veja os vídeos abaixo, graças ao gênio de nossa Editora-Chefa, mestra nesses mistérios enfeitiçantes da técnica. Quem desejar saber e ver mais, é só clicar no link: http://delta02.blog.simplesnet.pt/ onde se pode acessar um rico material sobre o Zeca....
Canção de Embalar (José Afonso)
A morte saiu à rua (José Afonso)