PATATIVA DO ASSARÉ


Patativa do Assaré é desses artistas que conhecia apenas indiretamente, através de citações, reportagens, etc. Muito comentado aqui pros lados do Sul, no entanto, pouquíssimo, quase nunca executado. Vez ou outra uma música, uma homenagem esparsa. Nunca uma audição cuidadosa, in loco, de um dos bambas, símbolo da genialidade diretamente brotada do povo, a exemplo de Zé Coco do Riachão, Chico Antônio, os violeiros Manoel de Oliveira e Badia Medeiros ou Cora Coralina, dentre tantos...

Assim, foi que noutro dia, em rápida passagem pela capital da terra de meus pais, Recife, numa lojinha de um mercado daquela cidade, lá estava, em lugar de destaque, um dos discos mais conhecidos do vate sertanejo: A Terra É Natura. Solicitei-o e enquanto colocava o CD na embalagem, notei um grande desconforto no dono da lojinha, um senhor por volta de seus sessenta anos, peso um pouco acima do normal, jeitão despachado de um nordestino típico. Estava visivelmente tenso e pude claramente perceber o instante em fez certo esforço para engolir em seco. Procurei não encara-lo diretamente, dando uma rápida passada d’olhos em outros CDs e livros, vendo entre vários artistas regionais, Jessier Quirino, grande poeta popular radicado na cidade e Maciel Salú, filho do grande rabequeiro, Mestre Salustiano.

Na rápida e quase instintiva, reflexão a respeito do desconforto do homem, pensei nas diversas possibilidades que podem ocorrer a alguém durante o dia, coisas desagradáveis que fariam desejar se afastar de tudo e de todos - uma questão familiar, um negócio que deu errado, uma grande decepção, um calote, etc., etc. - mantendo-se firme nos afazeres unicamente por conta do dever de ofíci... O homem apanhava uma pequena sacola plástica e nela acondicionava cuidadosamente o CD enquanto sacudia a cabeça contrariado!... Estendeu-me a sacolinha com a mão trêmula, mordendo o lábio inferior enquanto eu lhe repassava o dinheiro. Então, ele fitou-me e vi que seus olhos estavam marejados: continha, com dificuldade, um enorme sofrimento. Eu ia dizendo alguma coisa – qualquer coisa – quando ele finalmente irrompeu, como que aliviando a garganta: tinha a voz embargada e tive dificuldade em compreende-lo, a princípio: “Esse era o úrtimo, o úrtimo, o úrtimo disco do Patativa que eu tinha! E esse, logo nesse, ele fala de Nanã, de sua querida filhinha Nanã!” Um desespero – contido? – exalava de sua voz, eu compungido, quase me sentindo culpado, pesaroso daquele homem que se desfazia de seu querido Poeta, mas, por outro lado antevia a tremenda contradição, só exposta por conta da Lei do mercado, a inflexível “OfertaProcura”: que fazer? Eu disse alguma coisa, tipo “vai ser bem cuidado”, agradeci e saí, no fundo não dando muita importância aquele episódio quase insólito...

Vários dias depois, em casa, numa tranqüila tarde de sábado, típica do ser-tão paulistano, em que sabiás, bem-te-vis, coleirinhas vem pousar numa jabuticabeira diante de minha janela, coloquei na “agulha” Patativa do Assaré e A Terra é Natura... Só então pude perceber porque aquele homem, simples homem do povo, que numa lojinha de um mercado popular em Recife, vende discos, livros, carretéis de linha, canivetes, salgadinhos e outras quinquilharias, se incomodou tanto ao se desfazer de seu exemplar de Patativa do Assaré. O poeta Patativa fala diretamente aos corações de seus conterrâneos. A voz é comum, de um sertanejo já idoso; voz áspera, quase rude forjada no martírio secular do povo esquecido, tal qual o Sol inclemente, levemente amainada pela ternura de certas partes do texto e pelo violão de Nonato Luiz.

Dor, melancolia, revolta, tudo se funde na poesia matuta, que descreve belezas e crueldades, com rara intensidade dramática. Estudiosos do vate sertanejo dizem que ele jamais burila seus versos, transcrevendo diretamente e é exatamente essa a impressão que causa sua audição: os versos nos atingem em golpes lancinantes, sem meios termos, sem intermediários, dando-nos a impressão de estar no terreiro de sua casa, tendo como cenário a desoladora, entretanto bela paisagem do sertão, como numa cena do filme de Lírio Ferreira, o Árido Movie – nesse disco está a famosa Vaca Estrela e Boi Fubá, que ele canta acompanhado por Fagner, também produtor.

Patativa do Assaré não é para se ouvir como fundo de conversa. Não induz à distração, não ameniza, é cortante mesmo quando retrata a doçura da alma sertaneja, quando dissolve a amargura... Seu apelo é irresistível, comunicação instantânea, retrato pungente e fiel de uma gente que transforma o abandono, o desgosto, o sofrimento em fortaleza: uma gente que jamais desiste e que tem uma formidável vocação para a alegria: basta um pandeiro e um ganzá e inicia-se um folguedo. Tendo uma viola e um pé-de-bode de oito baixos, então é festa completa até o raiá do dia: o nordeste é um clarão na alma nacional: Clariô!

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SERVIÇO:
Patativa do Assaré - O Pássaro Repentista

As penas plúmbeas, as asas e cauda pretas da patativa, pássaro de canto enternecedor que habita as caatingas e matas do Nordeste brasileiro, batizaram poeta Antônio Gonçalves da Silva, conhecido em todo o Brasil como Patativa do Assaré, referência ao município que nasceu. Analfabeto "sem saber as letra onde mora ", como diz num de seus poemas, sua projeção em todo o Brasil se iniciou na década de 50, a partir da regravação de "Triste Partida", toada de retirante gravada por Luiz Gonzaga.

Filho do agricultor Pedro Gonçalves da Silva e de Maria Pereira da Silva, Patativa do Assaré veio ao mundo no dia 9 de março de 1909. Criado num ambiente de roça, na Serra de Santana, próximo a Assaré , seu pai morrera quando tinha apenas oito anos legando aos seus filhos Antônio, José, Pedro, Joaquim, e Maria o ofício da enxada, "arrastar cobra pros pés" , como se diz no sertão.

Embora tivesse facilidade para fazer versos desde menino, a Patativa do município de Assaré, no Vale do Cariri, nunca quis ganhar a vida em cima do seu dom de poeta. Mesmo tendo feito shows pelo Sul do país, quando foi mostrado ao grande público por Fagner em finais da década de 70, até hoje se considera o mesmo camponês humilde e mora no mesmo torrão natal onde nasceu, no seu pedaço de terra na Serra de Santana

Seus livros foram publicados ocasionalmente por pesquisadores e músicos amigos e, parceria com pequenos selos tipográficos e hoje são relíquias para os colecionadores da literatura nordestina.

FONTE: Musica Nordestina
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