Num lugarejo qualquer do interior, um homem foi apanhado naquele que se constituía o crime mais comum naquelas bandas: roubo de galinhas. Furioso e ameaçador, o proprietário dos galináceos foi até a Delegacia, localizada na rua logo acima de sua casa, onde deu parte do ocorrido ao delegado de plantão, ou melhor, ao único delegado existente. A autoridade, homem cordato e sensato, porém resoluto, destacou a Força Policial, composta exclusivamente pelo cabo Abiel, o Bié, a ir dar voz de prisão ao ignominioso fraudador da Lei. Poucos minutos depois, chega o Cabo Bié, conduzindo o larápio, alcunhado nas redondezas Zé Galinha, codinome apropriado à sua atividade costumeira, não só com relação aos galináceos da população, mas a tudo o que fosse sem importância: balas, doces, frutas, peças de roupas nos varais. Vinha devidamente algemado e levando um pescoção a cada cinco segundos, como era praxe por aqueles rincões.
O Delegado ergueu a mão num gesto de contenção e solicitou ao Cabo Abiel, o Bié, que retirasse as algemas, desnecessárias, pois o meliante não representava perigo e ademais não tinha para onde fugir naquele descampado: tudo o que havia nas redondezas eram desoladas invernadas ocupadas por pouquíssimos e raquíticos bois e o resto eram canaviais recém cortados e queimados.
Tendo diante de si vitima e algoz, o Delegado, consultando os botões da camisa aberta, viu-se diante de 3 (três) sérios problemas: 1º- aquela delegacia não era dotada de celas para presos. Quando necessário, conduzi-los-ia ao povoado mais próximo, a mais de 100 quilômetros de distância; 2º - a viatura policial estava com um pneu furado e sem gasolina; 3º - o único posto de gasolina da cidade fora lacrado naquela manhã pelo próprio delegado, por adulteração de combustível.
Porém, ele representava o Estado brasileiro, a Ordem e o Progresso, era um servidor leal e cumpridor rigoroso de suas obrigações, cioso de que cabia-lhe assegurar a fórmula justa e correta da presença do Estado, da própria Civilização, à qual representava, enfim. Vítima e algoz, tendo entre eles o Cabo Bié, encaravam-no, ansiosos pelo veredicto.
- Não obstante tendo sido o sr. José Pacheco da Silva apanhado em flagrante, manifesto, evidente delito, surpreendido pelo sr. Roberval Epaminondas, aqui presente e dono das aves. Evadiu-se, ao que consta, em tempo recorde... Contudo, mesmo assim, mesmo evidenciando-se a torpe intenção do sr. José Pacheco, a Justiça não crê ser necessário a detenção do suspeito...
- Mas Doutor Delegado... – Interrompeu Epaminondas, indignado – esse cabra não é “suspeito”, ele é ladrão de verdade, todo mundo aqui sabe que é ladrão, o apelido dele é Zé Galinha!
- Sr. Epaminondas – o Delegado aparteou, com um sorriso cortês – como representante do Estado brasileiro e cumpridor do que reza a Carta Magna, tenho de dizer que tecnicamente o sr. José Pacheco é suspeito e goza do benefício de quaisquer dúvida até que....
- Ara! – Epaminondas tinha as veias do pescoço saltadas – Mas, que!? Suspeito uma pinóia! Esse cabra merece é uma pisa, uma surra em praça pública!
- Alto lá, sr. Epaminondas, alto lá! – o Delegado foi rápido no aparte, tomando o cuidado de levantar apenas levemente a voz, forma de acentuar sua autoridade sem os costumeiros exageros comumente presentes nas autoridades – Devo dizer que a Lei impera nessa cidade e tudo será feito dentro das conformidades legais, como a Constituição expressamente recomenda... – nesse ponto, Roberval Epaminondas, já dando mostras de impaciência, parecia querer mais é que aquilo chegasse logo ao final. O Delegado prosseguiu:
- Enfim senhores, sem o produto evidente do roubo, devo concluir que não houve nessas paragens ato ilícito evidente e claro, apenas indícios. Veementes indícios, reconheço, mas que não se consolidam á luz da realidade. E o que é real, senhores? Evoco Heráclito, evoco Parmênides, evoco Pitágoras, evoco Thales de Mileto! Platão, Aristóteles, o próprio Sócrates, afirmariam diante de todos nós que não nos é possível perceber a realidade em toda a sua complexidade! O que vemos diante dos olhos são apenas abstrações, quando muito, aparentadas com a realidade! Um gato que vemos não é o verdadeiro Gato, mas apenas, uma idéia daquele que seria o gato original, o gato real... Segundo Hegel, não cabe a Justiça, na figura do Estado, punir, mas sim salvaguardar os princípios fundamentais do Homem. – fez uma pausa. - Baseio-me, ainda, na jurisprudência da decisão do Supremo Tribunal, o guardião-mór da Carta Magna, concedeu Hábbeas Corpus em caso de repercussão nacional, argumentando não haver razões de detenção para interrogatório... ao risco de colocar em risco o Estado de Direito. Desse modo, meus caros senhores, o encarceramento ilegal, se levado a cabo, constitui-se em séria ameaça valores democráticos... Isso exposto, decido por bem, data vênia!, relevar e relaxar o ato prisional ao qual seria submetido o sr. José Pacheco.
José Pacheco, vulgo Zé Galinha, caboclo iletrado, sobrevivente num mundo onde desconhecia as regras, aturdido e impressionado com a pujança e beleza do palavreado desconhecido, ergue as sobrancelhas, indagando ao Delegado:
- Doutor, quer dizer que tenho de devolver a galinha?
esse causo é uma adaptação de muitos do gênero contado
ainda nos dias de hoje no interior do Brasil, sendo o produto de roubo mais comum, uma viola
O Delegado ergueu a mão num gesto de contenção e solicitou ao Cabo Abiel, o Bié, que retirasse as algemas, desnecessárias, pois o meliante não representava perigo e ademais não tinha para onde fugir naquele descampado: tudo o que havia nas redondezas eram desoladas invernadas ocupadas por pouquíssimos e raquíticos bois e o resto eram canaviais recém cortados e queimados.
Tendo diante de si vitima e algoz, o Delegado, consultando os botões da camisa aberta, viu-se diante de 3 (três) sérios problemas: 1º- aquela delegacia não era dotada de celas para presos. Quando necessário, conduzi-los-ia ao povoado mais próximo, a mais de 100 quilômetros de distância; 2º - a viatura policial estava com um pneu furado e sem gasolina; 3º - o único posto de gasolina da cidade fora lacrado naquela manhã pelo próprio delegado, por adulteração de combustível.
Porém, ele representava o Estado brasileiro, a Ordem e o Progresso, era um servidor leal e cumpridor rigoroso de suas obrigações, cioso de que cabia-lhe assegurar a fórmula justa e correta da presença do Estado, da própria Civilização, à qual representava, enfim. Vítima e algoz, tendo entre eles o Cabo Bié, encaravam-no, ansiosos pelo veredicto.
- Não obstante tendo sido o sr. José Pacheco da Silva apanhado em flagrante, manifesto, evidente delito, surpreendido pelo sr. Roberval Epaminondas, aqui presente e dono das aves. Evadiu-se, ao que consta, em tempo recorde... Contudo, mesmo assim, mesmo evidenciando-se a torpe intenção do sr. José Pacheco, a Justiça não crê ser necessário a detenção do suspeito...
- Mas Doutor Delegado... – Interrompeu Epaminondas, indignado – esse cabra não é “suspeito”, ele é ladrão de verdade, todo mundo aqui sabe que é ladrão, o apelido dele é Zé Galinha!
- Sr. Epaminondas – o Delegado aparteou, com um sorriso cortês – como representante do Estado brasileiro e cumpridor do que reza a Carta Magna, tenho de dizer que tecnicamente o sr. José Pacheco é suspeito e goza do benefício de quaisquer dúvida até que....
- Ara! – Epaminondas tinha as veias do pescoço saltadas – Mas, que!? Suspeito uma pinóia! Esse cabra merece é uma pisa, uma surra em praça pública!
- Alto lá, sr. Epaminondas, alto lá! – o Delegado foi rápido no aparte, tomando o cuidado de levantar apenas levemente a voz, forma de acentuar sua autoridade sem os costumeiros exageros comumente presentes nas autoridades – Devo dizer que a Lei impera nessa cidade e tudo será feito dentro das conformidades legais, como a Constituição expressamente recomenda... – nesse ponto, Roberval Epaminondas, já dando mostras de impaciência, parecia querer mais é que aquilo chegasse logo ao final. O Delegado prosseguiu:
- Enfim senhores, sem o produto evidente do roubo, devo concluir que não houve nessas paragens ato ilícito evidente e claro, apenas indícios. Veementes indícios, reconheço, mas que não se consolidam á luz da realidade. E o que é real, senhores? Evoco Heráclito, evoco Parmênides, evoco Pitágoras, evoco Thales de Mileto! Platão, Aristóteles, o próprio Sócrates, afirmariam diante de todos nós que não nos é possível perceber a realidade em toda a sua complexidade! O que vemos diante dos olhos são apenas abstrações, quando muito, aparentadas com a realidade! Um gato que vemos não é o verdadeiro Gato, mas apenas, uma idéia daquele que seria o gato original, o gato real... Segundo Hegel, não cabe a Justiça, na figura do Estado, punir, mas sim salvaguardar os princípios fundamentais do Homem. – fez uma pausa. - Baseio-me, ainda, na jurisprudência da decisão do Supremo Tribunal, o guardião-mór da Carta Magna, concedeu Hábbeas Corpus em caso de repercussão nacional, argumentando não haver razões de detenção para interrogatório... ao risco de colocar em risco o Estado de Direito. Desse modo, meus caros senhores, o encarceramento ilegal, se levado a cabo, constitui-se em séria ameaça valores democráticos... Isso exposto, decido por bem, data vênia!, relevar e relaxar o ato prisional ao qual seria submetido o sr. José Pacheco.
José Pacheco, vulgo Zé Galinha, caboclo iletrado, sobrevivente num mundo onde desconhecia as regras, aturdido e impressionado com a pujança e beleza do palavreado desconhecido, ergue as sobrancelhas, indagando ao Delegado:
- Doutor, quer dizer que tenho de devolver a galinha?
esse causo é uma adaptação de muitos do gênero contado
ainda nos dias de hoje no interior do Brasil, sendo o produto de roubo mais comum, uma viola