A CANASTRA E SEUS GUARDADOS

Imagino eu que algumas moçoilas do século XIX, ostentaram, faceiras, em seus longos passeios, canastras de tons variados, e dentro delas carregavam lenços, perfumes e alguns amargos segredos.

A Serra da Canastra[1] carrega consigo histórias perfumadas em tons cerradeiros. Paisagem tecida em mata – às vezes abundante, em outras sumideira – de delicadas e alvas florezinhas, que se fazem neve em chão esverdeado, de descrentes lobos guará, que do alto da desconfiança ladina, nos olham de pálpebra baixa, como querendo alertar para o que devia ser feito e não foi no tempo preciso e de tamanduá que, às vezes dá bandeira, com muita graça, mas se exibe mais para pedir socorro do que para se refestelar com sua beleza formigueira.

Foto 1: revista Meio Ambiente (Jornal de Uberaba/ 2008) foto 2: Iara Fernandes

Afora os bichos e suas artimanhas para continuarem vivos, as dores de queimadas – já registradas pelo curioso Saint-Hilaire[2], em séculos passados – e o quanto do parque ainda deve ser desapropriado para que lhe sejam devolvidos os 200 mil hectares de nascença, a poesia das manhãs ou das tardes na Canastra chama cada um de nós e é impossível, não lhe dirigir uma mesura, pelo menos uma vez na vida.

O São Francisco quis ali ser. Abençoando o Brasil afora em seus 2830 km de encaixe entre as cidades, as pessoas e as montanhas, plantou fé na Serra e decidiu brotar lá suas águas fresquinhas e luminosas. A nascente é um charco, grande extensão de terra choramingando. Não se vê um olhinho sequer para se dizer "É aqui". Tudo é lagrimazinha corredeira que se junta a outra e a outra e a mais outra e um fiozinho escapa, abraça outro fio e viram irmãos, água grossa, correndo rápido e dá um rio e cachoeiras rendadas em comprida medida.

Foto 1: revista Meio Ambiente (Jornal de Uberaba/ 2008) foto 2: Iara Fernandes

São Roque[3] – com jeito de ter sempre um causo pra ser contado no sossego da única pracinha – é lugarzinho bom de se comer queijo curado e tomar café na caneca de esmalte, no portão da casa, ou na cozinha, banhada pelo aroma de feijão com louro, no fogão a lenha. É nesse aconchego que se ouve o caso da Fazenda Zagaia. (Elomar, que eu saiba, não passou pela Serra, mas cantou também um ...trovejo c´ua zagaia só/ Foi tanto sangue que dá dó...[4]) A dita fazenda, plantada bem na rota que levava a Goiás, abrigava um casal de velhos, amistosos na hospedagem, austeros na cobrança. A cada viajante eram oferecidos mimos e regalias na ida e o quarto da zagaia, na volta. Quando o sujeito pensava de encontrar o descanso merecido depois de dura viagem, deitando-se sobre os lençóis macios, a lança vinha do teto e sangrava seu peito. O casal, depois de sumir com o que restava do vivente, surrupiava-lhe as posses.

Fazenda da Zagaia - Foto de 2002 - Jacobs

Enche os olhos da gente o arco-íris chegando desconfiado depois dos chuviscos das tardes. Mas, se for mês de nuvens pesadas em céu de chumbo, melhor não descer cachoeira. É tanta água que fica arrodilhada no calabouço da queda que o perigo é certo.

Casca D’Anta ainda não perdeu a majestade para nenhuma outra corredeira do Parque. Longo o caminho para se chegar a ela e, de longe, já se vêem os muitos metros de caída, dizem quase duzentos. Se provê o olhar com descida branca e drapeada, não poupa forças no encontro das águas com o solo. Tanto que não se chega perto do confronto. A força é bruta e corpo de homem nem suporta o volume.

Fotos: Iara Fernandes

É assim a Serra. A Canastra onde se guardam, de um jeito verde bem feito, um pedaço de Minas e uma “(...) gente rica de um ouro particular, de sabedoria ancestral que não se escreve, não se ensina, nasce em cada um (...)” [5].


Texto: Iara Fernandes

[1] Serra em formato de caixa, ou baú, situada no Parque Nacional da Serra da Canastra, criado em 1972, com 71.525 hectares demarcados e parte dos municípios: São Roque, Delfinópolis e Sacramento. (MG).
[2] Cientista francês, autor de VIAGEM ÀS NASCENTES DO RIO SÃO FRANCISCO E PROVÍNCIA DE GOIÁS, publicado em Paris, em 1847.
[3] São Roque de Minas, município a sudoeste do estado, na região do Alto São Francisco, onde se localiza uma das entradas para o Parque.
[4] Elomar Figueira de Melo. Na Quadrada das Águas Perdidas/1979. Música: Arrumação.
[5] GAMBARINI, Adriano. SERRA DA CANASTRA. Textos de Laís Duarte Mota e Rogério Cunha de Paula. Edição Aori Produções Culturais.
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