DA ESCRITA FORMAL OU DA ESCRITA VAZIA QUE NADA DIZ















Ele se diz Príncipe Herdeiro da Família Real Brasileira e já aportou nalguns cantos desse sertão paulistano, noutras ocasiões. Zé Mangabeira (não confundir com outro que se diz “Mangabeira”, ex-funcionário de Harvard e atualmente servidor da União, ocupando a chefia de um Ministério, desses sem relevância, que se criam para acomodar os amigos e congêneres), por conta das vicissitudes da vida e da crise financeira que abalou os maiores Reinos da Terra, viu-se na situação extrema de aceitar um emprego de escriba-copista num dos milhares de departamentos do serviço público.

Foi recebido com galhardia inesperada por uma chefa de lindos, fulgurantes e melosos olhos azuis, que se apresentou como sendo de família mineira tradicional. Zé Mangabeira tomou o tento de verificar nos anais das ordens cangaceirísticas das Minas, sem, no entanto, encontrar referências... contudo isso não tira o valor: certamente é um desses títulos nobiliárquicos, concedidos por Honra ou Mérito ou os dois. De certo que achou muito conveniente lidar com alguém de alta estirpe, pois seria um embate entre iguais: afinal, os reinóis precisam da elite, burguesa ou aristocrática em seu projeto nacional re reconstrução...

Veio a primeira missão do fragilizado Prinspe: redigir um Oficio aos cuidados do Sr. juiz de direito. Assim o fez, nomeando formalmente “senhor juiz fulano de tal”. Foi o desarrumo inaugural do abdicado dignitário com a burocracia: a dama, em posição hierárquica superior desancou o já mortificado Prinspe, sacudindo o documento por entre tremores nas mãos e respingos salivares, olhos faiscantes, ante o pecado mortal de dirigir-se a um Juiz de modo errado, pois o mesmo não é um ser comum, não é um “senhor”, é Meritíssimo! “Onde já se viu!, seu Mangabeira”. Atônito, Zé Mangabeira repassou mentalmente os muitos progressos trazidos pela Modernidade, supostamente diluindo as distâncias sociais, minimizando os entraves burocráticos que tanto dificultam as relações... Referir-se a alguém pelos muitos títulos, num rito litúrgico interminável, o torna banal ante os milhares de ações protocolares que se seguem. Imaginou, sim, que o Juiz seja um distinto, qualificado e honrado senhor, e que chamá-lo cortesmente de “senhor” não constitui desrespeito... Risco maior se corre se na azáfama dos escrivinhamentos trocar um “i” pelo “e” e acrescentar um “r” a seguir do “t”, desalojando o impoluto magistrado de seu honorífico posto, atirando-o não só à vala comum, mas à incomum vala, abaixo do nível do mar, onde reinam as damas do meretriciu. Além do quê, errado ao pé da letra é chamar a autoridade forense de Juiz. Se tal se impôs por costume e simplismos vulgares, foi erro crasso, pois o magistrado não julga, mas interpreta de acordo com a Lei; ele não cria Leis nem os julgamentos, mas avalia as ações de quem é apanhado em delito. Julgador, se o houver, deve estar acima de tudo e de todos, inclusive das leis, e assim sendo, só o poderá se dotado de poderes divinos, em suma o Criador Supremo, e não alguém que esteja submetido às Leis das três dimensões conhecidas e também da gravidade. O digno magistrado, não obstante a toga e o título, respira e se alimenta por vias normais, escova os dentes, toma banho e assim sendo, não pode fugir à sina destinada à espécie que por ora se denomina homo-sapiens... Parafraseando Mestre Ariano Suassuna – a propósito doutor em Letras e Leis! – poderia se dizer do magistrado um decifrador, sendo aqueles das instancias superiores, decifradores-mores!.

Enfim, para o bem geral e agilidade nos procedimentos burocráticos, bem se faria romper progressivamente com os arcaísmos palacianos ou cartoriais que a banalidade torna adulação vazia... Corteses e áulicos, que sejam os conteúdos dos propósitos de alavancar o progresso humano, do contrário, a palavra torna-se vazia e apenas entopem os autos processuais que atulham os escaninhos meritíssimos, para honra e glória das traças que por ali transitam e reinam sem igual...



Porém, Zé Mangabeira, deposto Prinspe, agora barnabé inábil, apenas suspirou fundo e corrigiu a lauda, não esquecendo de acrescentar ao final “com elevadíssima estima e assaz consideração.” Contudo, sabe-se lá por que volteios da mente delirante, trocou involuntariamente o “i” pelo “e” e acrescentou o famigerado “r” ao tratamento nobiliárquico com que nos Ofícios se distingue os Magistrados do restante da humanidade...




“A letra foi feita para mentir.
Cristaliza na tinta a parte escura da verdade,
a infinitude do universo numas dezenas de
caracteres cujas possibilidades

combinatórias são muito
limitadas.”

Augusto Roa Bastos,
A Vigília do Almirante
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