Antes, porém, uma palavrinha, pequetita, assim, sobre esse evento, a Quaresma, de muita importância simbólica, ainda, para grande parte das gentes do interior. Lá em Junqueirópolis, Jaciporã, Irapurú e aquelas cidades do Pontal, ao tempo em que lá eu vivia, nas aulas de Catecismo e nas conversas entre os adultos, me asseguraram que significava os 40 dias de provação de Nosso Senhor no deserto... Bem, esse significado eu não vi em nenhum outro lugar, apesar das equivalências de outras explicações... certamente, reflete a incrível capacidade de adaptação que as comunidades isoladas das festas e costumes ditos oficiais... A isso poderia também de chamar “sincretismo religioso”? Com a palavra, Mestre Zé Maria, nosso Guru, autoridade nesses assuntos, ele que foi coroinha dos mais competentes, lá em Paraguassu Paulista. A verdade é que a associação da Quaresma com os dias de tentação no deserto é uma explicação bem plausível, apesar de representar uma discrepância histórica, pois os dias de tentação foram antes do início da vida pública de Cristo, como mensageiro do Santo Verbo, enquanto os dias retratados na Quaresma antecedem a festa da Páscoa e a Ressurreição... Porém, os sertanejos costumam passar por cima de certos detalhes, acontecidos há tanto tempo.. E mesmo os historiadores mais respeitáveis dizem que o passado muda constantemente, de modo que a versão dos sertanejos do Pontal (ou pelo menos das fazendas onde vivi) é perfeitamente plausível...
A palavra Quaresma vem de Quadragésima e o número 4 tem para os cristãos o significado simbólico do mundo material e esse tempo, o da Quaresma, tem a finalidade de nos lembrar tempos de sacrifício e provações: 40 dias do Dilúvio, 40 anos de travessia do povo judeu pelo deserto sob a direção de Moisés, os 40 dias que Moisés ficou na Montanha onde recebeu as Tábuas da Lei – que arrebentaria na cabeça dos apressados que não tiveram paciência de esperar e resolveram fazer um deus provisório na figura de um bezerro de ouro – e os 400 anos que duraram a Diáspora no Egito... De qualquer forma, além das penitências e dos jejuns que muitos cristãos praticam, sobretudo deve significar para todos, tempo de reflexão na busca de justiça e amor para toda a humanidade; preparar o espírito para a Páscoa, a “passagem”; renascimento... Assim sendo, ao som de violas em clamores, entremos na Quaresma...
VIOLAS E VIOLEIROS
E nesse tempo, o violeiro solitário se permite nos intervalos de jejuns e penitências, os solos de sua violinha. Nos arpejos nostálgicos e melancólicos, destinados a embalar as almas dos penitentes, dos peregrinos em busca da perfeição espiritual. Mas se permite refletir sobre sua condição, sua sina de cristão e do dom dado por Deus...
O mundo onde habitam os violeiros é algo mais que os acordes, os trinados, os ponteados, arpejos, das modas e dos causos. Quem já ouviu falar das famosas lendas, como o costume de ter no bojo do instrumento o guizo de cascavel? E o pacto com o decujus, o sangue-ruim, o maleitoso, o “salafrário”,o tinhoso, o chifrudos? São muitos os violeiros e estudiosos que juram de mãos postas que é a mais pura verdade. Força de expressão, lendas, simpatias? Pouco importa: verdade mesmo é que no mundo dos violeiros, esses limites são muito tênues ou praticamente inexistem
As histórias de pacto são conhecidas e variadas e não apenas entre os violeiros: Paganini e Robert Jonhson são os casos clássicos, mas se fala dos Beatles, dos Stones ou de todo e qualquer artista que faz diabruras no palco: “só pode ter feito o pacto, só pode!”, eu próprio me vi murmurando outro dia ao ver o matuto moderno Ricardo Vignini executar um arranjo mágico para A Volta da Asa Branca, para a voz de Maria DaPaz.
Porém, existe a contrapartida, ou seja, que a viola é invenção divina, e que o violeiro nasce com esse dom, sendo desde sempre uma união indissolúvel, viola e violeiro. Em oposição ao Divino é que entra a história do pacto: o violeiro que não logrou a benção divina, busca o outro lado - curiosa dicotomia, presente em muitas sociedades.
Transcrevo aqui um versinho de Zé Paulo Medeiros, reportando a Criação Divina:
“.. e que Deus Pai lá do céu
Escutava uma viola
Enquanto criava o mundo”
Zé Paulo Medeiros, no disco A Cara do Sertão. Essa faixa é cantada em dupla com o legendário Tinoco
Os violeiros e seu mundo. Suas violas amadas/amantes, um mundo repleto de vivências, experiências que trazem consigo a memória primordial, que reportam a nossa formação enquanto nação, mergulhando nas infinitudes do tempo. Referencias à viola caipira podem ser encontradas nas violas portuguesas, como a campaniça, apesar do formato diferente, pois aquela é grandona, até meio desengonçada. Por mim, acho muito parecida com as vihuelas espanholas, que tem cinco cordas duplas e timbre parecido... Porém, de afinação completamente diferentes... É provável que no fundo tudo se entrelace e buscar elementos comuns, é mais ou menos como buscar o Elo Perdido...
Estudiosos e demais entendidos anotam que existem similitudes de afinação entre a viola-de-cocho e a braguesa. Com a palavra, os mestres. Dizem que nos inícios da formação da terra brasilis, colonos pobres e portugueses degredados, índios, negros, todos se arreuniam a tocar e na solidão dos sertões e aos poucos foi sendo incorporado o toque nostálgico, tão característico dos violeiros, principalmente do interior do país. Nas modas, nos causos, nos trinados, ecoam lembranças sonoras antiguíssimas, reminicências vivas da cultura humana, por toda a parte...