SILENCIA A RABECA DO MAESTRO ZÉ GOMES

O som da rabeca interrompeu-se. Em meio ao acorde, calou-se, até a vibração se extinguir por completo, o tempo suspenso, o vazio. E o rabequeiro Zé Gomes sai de cena, deixando a peça inacabada.
Escrevi rabequeiro, mas o Zé era artista completo: arranjador, compositor, luthier, pesquisador, maestro. Pensador da cultura, crítico radical das “panelinhas” repletas de sanguessugas e vampiros, dos que mamam verbas, conluio infame onde “quem está dentro não sai e quem está fora não entra”. O Zé não estava nessa. Durante seu longo percurso, sempre foi rebelde, arredio, avesso ao sucesso fácil e aos holofotes.

Dani e o Maestro, Centro Cultural São Paulo

Na noite em que nos despedimos, o cavalheiro Arthur Bandeira, dedicado amigo, perambulava, inconformado, exangue, após cumprir o triste, mas necessário papel de avisar e receber os muitos amigos. Enio Squeeff, velho amigo, não ocultava a perplexidade. Nani, os olhos vivazes, denotavam incredulidade, a perplexidade de todos nós. Os filhos, comedidos, dignos, corteses, apesar da tristeza. Deo Lopes, desamparado, vagava entre a tristeza atual e as velhas e alegres lembranças das andanças. Dércio e Dani transformavam dor em música trazendo com eles as vozes de Deo, das irmãs Célia e Selma, de Noel Andrade, a rabeca de Thomas Rohrer. Kátya Teixeira rompeu seu silencio entoando o Caicó, tema tão caro ao Zé.

Seu nome de batismo era Jose Bonifácio Kruel Gomes, mas por mais de cinco décadas se tornou conhecido como Zé Gomes, o “Zé”. familiar a arte de Bach, Stravinsky, Mozart, Paganini, Villa-Lobos, de quem foi magistral interprete. Mas o que gostava mesmo era de garimpar nos caudalosos rios da Terra Madre, inundados das mais puras manifestações populares, para de lá extrair pedras brutas e lapidar com maestria de ourives até torná-las pérolas do mais puro quilate. Foi assim que após 10 anos de sua estada no Pantanal, com a legendária Comitiva Esperança, com Almir Sater, Paulo Simões e Geraldo Espíndola, veio a público o antológico Palavras Querem Dizer, onde a viola-de-cocho, rústico instrumento de origem medieval, fabricado e usado pelos pantaneiros, junto com a rabeca, outro instrumento cuja origem se perde nas brumas do tempo, ganhou tratamento digno de ser apreciado nas mais exigentes salas de concerto. E assim, sessentão, depois de criteriosa maturação, estréia em disco solo.


Palavras Querem Dizer, capa e contracapa


Em seguida veio “A Idade dos Homens”, em parceria com o filho André, obra aberta, que mostra a avidez pelo aprendizado, a troca constante, entrelaçando sons que vão do deserto ardente aos picos gelados; do Oriente à Europa; do medievo ao moderno, harmonizando instrumentos aparentemente díspares: chocalhos metálicos, violino, teclado, tablas, viola de cocho, baixo, sitar, darbouka, bodrán, rabeca, saltério, violão, guitarra midi,etc.



A Idade dos Homens


No belíssimo e não distribuído comercialmente Tempos Interiores, novamente a coerência de sua trajetória: como cita Enio Squeff, num texto revelador: “... constam dessa gravação a aproximação com os clássicos no sentido estrito da palavra e toda gama de informações (musicais) ao longo dos séculos.” Assim, percebemos evocações a Villa, a Baden Powel; o bem humorado e irrequieto diálogo do violino com a viola caipira de Almir Sater na célebre Doma. Na faixa Veia Messina, tema baseado num texto de Saulo Laranjeira, num esforço para buscar autenticidade, recorre a uma singela rabequinha, de onde extrai o som que nos conduz, “visualmente”, às aldeias medievais, aos terreiros de dança do interior do Brasil, repletos de humor, nostalgia, alegria.



Tempos Interiores


Deixou pronto e inédito alguns trabalhos: um CD ao vivo com Yamandú Costa, uma impressionante parceria com Thomas Rohrer no disco “Rabecas”; Orquestra Rústica, feito para teatro infantil, além de muitas parcerias com o filho André e um número desconhecido de composições. Deixa também um inédito método para rabeca. Participou de mais de 200 gravações, com destaque para os discos: Terra Vento Caminho, de Dércio Marques; Planador, de Papete; Diana Pequeno, Elomar, Renato Teixeira, Dani Lasalvia, Deo Lopes, João Bá, Dorothy Marques, Paulinho Pedra Azul, etc, etc.

Do que morreu o Zé Gomes? O diagnóstico foi infarto, mas pode ter sido tristeza, indignação, frustração perante as tremendas dificuldades, cansado do vilipendio, das redundâncias, dos que se conformam com o sucesso fácil, descartável. O frágil corpo que abrigava um gigante, não suportou. Porém, foi sua vingança final, prevalecendo até o fim sua radical postura de sempre buscar as origens ignotas da expressão musical, tal como fez em Veia Messima... Como me disse o amigo Deo Lopes: “Ele foi o alicerce musical de todos nós...”

Convivi pouco com o Zé Gomes. Porém, foi o bastante para fundarmos uma fraterna amizade. Tratava-me com benevolência, respondendo com grande paciência as minhas rudimentares e leigas questões sobre música. E ao mesmo tempo, me interrogava: “O que acha dessa passagem? Não acha o violino cheio demais, roubando cena?” Até que um dia perguntei, intrigado: “Zé, porque você que tudo sabe, pergunta a mim, que não sei executar um acorde sequer?” Com sua polidez e sobriedade, respondeu na lata: “Vocês captam nuances que os ouvidos técnicos não conseguem”. Esse era o Zé. Eterno aprendiz, que não se conformava em se fixar nas estruturas já conhecidas.
Capa interna de Tempos Interiores

Silencia a rabeca. Interrompeu-se o som da viola-de-cocho, do cello, do violino, do violão. No vácuo, o silencio: lembrança do mago, cuja música nos arrebatava.
Rabecas, Zé Gomes e Thomas Rohrer


A turma do sertão paulistano deseja aos seus amigos, fãs, seguidores e especialmente a sua família, o desejo de superar e prosseguir....



Com Almir e Geraldo, refazendo o caminho da Comitiva Esperança
SERVIÇO:


PEQUENA NOTA BIOGRÁFICA
(Fonte: Jornal Já, Porto Alegre)

Zé Gomes começou a tocar profissionalmente aos 14 anos. Natural de Ijuí, aos 17 muda-se com a família para Porto Alegre e ingressa no Movimento Tradicionalista, com o grupo “Tropeiros da Tradição”, com Paixão Cortes. A formação serviria de modelo a todos os conjuntos que os sucederam.

No início da década de 1950, integrou o conjunto “Os Gaudérios”. Aos 18 anos, viaja com o conjunto à França, para participar do Festival Internacional de Folclore promovido pela Universidade Sorbonne, e volta ao Brasil com o primeiro prêmio.

Em 1955 trabalhou com João Gilberto, juntamente com Luis Bonfá, compositor da música do filme Orfeu no Carnaval, que já tinha elementos da Bossa Nova.

Em 1958 criou o Curso de Violão José Gomes, no qual ensinou mais de 1.500 alunos em uma década de funcionamento, época em que freqüentemente palestrava em seminários culturais ou integrava a OSPA.

Em 1966, Zé Gomes funda, com Bruno Kieffer e Armando Albuquerque, o Seminário Livre de Música (Selim), que dois anos depois vira o Centro Livre de Cultura. Em 1969, por concurso público, torna-se professor na Escola de Artes da UFRGS.

De 1968 a 1971 participa, como arranjador, de vários festivais. Muda-se para São Paulo no início dos anos 70, onde, além de continuar lecionando, compõe músicas para teatro, trilhas para cinema, fábulas infantis, quartetos, trios e duos instrumentais, corais, peças para viola e rabeca (instrumento que mais tarde viria a construir), e música sacra.

É considerado um dos maiores intérpretes de Villa-Lobos, cuja obra estudou profundamente. Dedicou-se ao estudo da rabeca e da viola de cocho.

Com os parceiros Almir Sater e Paulo Simões, viajou a cavalo mais de mil quilômetros pelo Pantanal, para fazer um filme sobre o homem pantaneiro e pesquisar a música da região.

Criou inúmeros projetos de artesanato e fabricação de instrumentos musicais, tais como rabeca acústica, chorongo , baixo acústico, calimba cromática, violino mudo.

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