rotas secretas antiqüíssimas, que não deixam ninguém se perder na imensidão desses sertões!
Dani e Antonio Pereira: duo no Bar do Frango
Assim, Sampa não é somente o cinza sem vida dos arranha-céus ou a poluição dos ares e rios: “tem rede cheirosa nos avarandados, moringa de água fresca” * nas frondosas árvores do Ibirapuera ou Trianon; e pra quem quiser,
cerveja gelada no ponto nos botecos; musica da boa no Bar do Frango, no Lua Nova, no Teatro da Vila, no Empório Santa Helena, etc.
Noite dessas, depois de mais um brilhante show da Katya, que retorna no melhor da forma, depois de quase um ano de molho, saí pra aspirar o soberbo frescor de uma noite de sábado, quando oiço dedilhar de cordas e uma voz feminina ecoando na noite, capaz de fazer o Coral Celestial dar uma olhadela para essa concorrente cá embaixo, nesse plano das três dimensões: chego mais perto e vejo que a voz nada tem de etérea, mas é muito da humana: da escola das Divas brasileiras, de Maysa, Dalva e com coloridos do bem mundano jazz! Que o Coral Celestial fique despreocupado, pois Graziela Hessel canta para os mortais e gente que dança nas praças e se enleva nos sons urbanos.
"Seu" Nilson, Graziela e Lucas (de costas com o violão)
Sentada no banco da praça, ali no inicio da avenida São Lucas, de um lado tinha seu Nilson do violão, seresteiro da velha estirpe que vez ou outra soltava seu vozeirão e homenageava dignamente Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Silvio Caldas e outros. E do outro lado, um jovem violonista da novíssima geração, Lucas Mandetta, que não se faz de rogado e quem viver há-de ver e ouvir o menino que representa dignamente nossa escola violonista: dentre suas influencias, Chico Branco, o maestro Edson Tobinaga e como se vê aqui, seu Nilson, da velha estirpe boêmia. (diga-se que Lucas é rebento da própria lavra de Grazzie e do Sakae).
Lucas Mandetta
Num canto da praça, o guru ZéMaria assunta embevecido a fluidez de gentes que dançam alegres. Outros, como ele, apreciam por puro deleite a música que faz com que nem percebamos um ou outro carro com escapamento aberto que vez ou outra passa; Giba da Viola, bem acompanhado, aparece por lá; até a musa verdadeira surge lá pelas tantas, para a alegria de meu cavalo, o Murzelo Alazão, que adorava a missão de carregá-la na garupa, singrando as trilhas e veredas do sertão.
Luciana, Giba, ZéMaria
Porém, alcançam-nos, eventualmente, as horas medonhas, no dizer de Elomar e as violas e as vozes silenciam e o melhor do canto da vida, “se aquieta dentro de nós.” **
“Calundú e Cacorê”, outro tema elomariano, que versa sobre os estados alternados que assaltam os vaqueiros em sua faina: a alegria do aboio e da condução das reses e os momentos de indizível solidão, também refletida nos mesmos aboios: alegrias e tristezas, saudades, sina de quem prossegue: certeza de vida, brada o poeta!
Nessas andanças, recordo com enorme saudade meu irmão, mais velho, que voltou ao seio do Criador – “o que é de Deus, a Ele torna”, diz Carlos Nejar.
Esse ano marcou a perda de duas pessoas fundamentais em minha trajetória: o rabequeiro Zé Gomes, que me incentivou a seguir pelo caminho das letras; e esse meu Mano: diga-se que em grande medida, me tornei o que sou graças ao imenso amor que ele, o Isaias, devotava a musica, principalmente caipira. Lembro-me dele ensaiando horas e horas para simplesmente cantar num baile lá na roça ou para o Ranchinho do Sapucaia, na Radio Junqueirópolis, onde tinha um horário patrocinado pela Loja dos Retalhos e o inesquecível bordão criado por ele : “A que mais barato vende e melhor atende!” Para ele, não fazia diferença, se ia tocar na rádio ou no baile: não valia errar ou desafinar, cada cantiga era repetida à exaustão, até encontrar o tom correto. E fazia tudo isso “apenas de ouvido”, conhecia por intuição apenas os acordes básicos. Queria eu ter sido violeiro e cantador, seguindo seu exemplo, mas o Criador sabe o que faz e cada macaco no seu galho ou “a cabra ao mato, o porco ao chiqueiro” *** ou ainda “antes trabalhar domingo que furtar na segunda feira” ****. Ou seja: antes ser bom ouvinte do que péssimo cantor!
Meninote ainda, lá no Pontal, cresci ao som de muita viola e cantorias. Por muito tempo fiquei sem compreender como é que meu irmão cabia dentro daquela caixinha de madeira com dois botões e um estreito painel de vidro na frente, pois de lá saía sua voz, todas as tardes de domingo. Ele me dizia que ia tocar na Difusora de Junqueiropolos, no Ranchinho do Sapucaia, mas como é que aparecia sua voz cantando na caixa de madeira? Eu olhava por trás, pelas frestas e nada de ver meu mano! (se não tivesse gente de olho, era bem capaz que eu abrisse o diacho da caixa, que os mais velhos chamavam de rádio de pilha!) Nesse Ranchinho do Sapucaia, dezenas de violeiros e duplas de todas as fazendas da região lá se reuniam aos domingos, em busca da vez de cantar! Era notório o fato de duplas que cantavam maravilhosamente nas rodas, mas quando ficavam diante do microfone, vinha a tremedeira e não saía nada ou então, inexplicavelmente desafinavam! A região era um celeiro de artistas. É bem possível que o Sr, José Pereira, o hoje internacionalmente conhecido Índio Cachoeira, tenha passado pelo Ranchinho – ele devia ser muito menino na época, uns 14, 15 anos. Fazendo jus ao nosso orgulho, o violeiro Julio Santin, de Irapurú, cidade vizinha, hoje representa a região com galhardia. Da vida parte, sem rancores ou amarguras. Deixa saudades e a lição de luta, de tudo encarar com franqueza e simplicidade, com a mesma naturalidade com que tocava e cantava por puro prazer...
Seguimos, seguimos, sempre em frente, um olho no futuro outro lá atrás, nas nossas origens, nunca esquecer de onde viemos: a História somos nós! O Matuto Moderno e seus arrojados arranjos que o digam!
*João Ba
** Atahualpa Yupanqui
*** Augusto Roa Bastos
**** Guimarães Rosa