Gostaria de estar aqui falando da maravilhosa música do sertão, dos artistas de Vitória da Conquista – que perdeu o talento de Dão Gomes, o Artesão de Sons; queria falar dos Matutos Modernos, de Dani Lasálvia, de nossa querida Katya Teixeira, do Bar do Frango, de Antonio Peireira, de tantos outros...
A tragédia do Haiti chama a atenção do mundo. Karma coletivo? Pode ser, pode ser. Chamo a atenção para o artigo se Sergio Augusto no Estadão de 24 de janeiro. O Haiti não é apenas o que se vê do terremoto, da corrupção e do misticismo. O Haiti tem uma História de tradição guerreira, que talvez não seja conhecida pela maioria. O artigo do Sérgio fala por si, por isso reproduzo na integra...
O Haiti que importa
Além da terra lacerada por terremotos e colonialismo, existe outro país, de duros guerreiros, músicos de ponta, grandes pintores
Sérgio Augusto - O Estado de S.Paulo
Há quem ligue o Haiti a Caetano Veloso ou a Graham Greene. Melhor do que nada. Muitíssimo melhor do que reduzir o Haiti ao vodu (ou à caricatura do culto de origem africana perpetuada mundo afora), a golpes de Estado, terremotos e furacões, desmatamentos e miséria, aos Tonton Macoutes e ditadores de óculos escuros espelhados. Mas existe um outro Haiti, anterior e posterior a Papa Doc e Baby Doc Duvalier, que tampouco está na música de Caetano e no romance satírico Os Comediantes, de Greene, e esse é o Haiti exemplar, o Haiti que importa: o Haiti de Toussaint L"Ouverture e Jean-Jacques Dessalines, Jean David Boursiquot e Wyclef Jean - o Haiti heroico e criativo.
L"Ouverture iniciou a libertação da ilha, concluída por Dessalines em 1804; Boursiquot é uma das glórias da renomada pintura naïf haitiana; Wyclef Jean, um rapper de fama mundial. Nas artes plásticas e na música (compas, zouk), os haitianos não disputam a repescagem. Encantei-me por seus pintores primitivos há mais de 30 anos, numa mostra em Miami, onde conheci, com vergonhoso atraso, os carnavais e as bodas de Boursiquot, as marinas de Jonas Camille Hector, as caçadas de Wilson Brigaud, os mercados de Fritzner Alphonse, cujas imagens nos remetem a Rousseau, Tarsila e Guignard.
Foi aí que deixei de associar o Haiti, única e exclusivamente, aos esbugalhados zumbis antilhanos dos filmes produzidos por Val Lewton e a uma americana chamada Kate. Invenção de Cole Porter, Kate foi até Porto Príncipe, nos anos 1930, para um descanso, mas lá apaixonou-se por um haitiano, depois por outro, e mais outro, adiando sempre a volta, até decidir-se por nunca deixar o Haiti, cujo turismo cresce exponencialmente depois que ela publica um livro sobre os mil encantos da ilha. A deliciosa ninfômana viveu até os 80 e teve funeral de luxo.
A canção Kate Went to Haiti foi composta por Porter para o musical Du Barry Was a Lady, cujo protagonista a certa altura sonhava que era Luís XV, às voltas com Madame Du Barry, a legendária amante do rei da França. Em 1793, quando Du Barry foi guilhotinada, o Haiti ainda se chamava St. Dominique e era a mais rica colônia europeia no Novo Mundo. Metade da produção mundial de café e açúcar saía de lá, não de Santo Domingo, a colônia espanhola do lado oriental da Ilha Hispaniola, futura República Dominicana.
Os escravos africanos que tocavam a agricultura de St. Dominique eram tratados com extrema crueldade pelos usineiros e cafeicultores franceses. Quem saía da linha, tinha o reto entupido de pólvora e o corpo implodido. Menos de uma década depois de Du Barry ter subido ao cadafalso, os escravos se revoltaram, sob a liderança de Toussaint L"Ouverture, a quem Napoleão mandou trancafiar num calabouço francês até que morresse de fome e sede. Em abril de 1803, o Espártaco creole afinal morreu. Nove meses depois, St. Dominique conquistou sua independência, proclamada por Jean-Jacques Dessalines.
Se tivesse sido branco, como Bolívar, e o Haiti não fosse apenas uma ilha, o general negro que derrotou Napoleão seria uma figura histórica bem mais conhecida no resto do continente. Vários livros inspirou, entre os quais Os Jacobinos Negros, do jamaicano C. L. R. James (traduzido pela Boitempo), e uma elogiada peça teatral do martiniquense Édouard Glissant, mas há anos que o ator americano Danny Glover luta contra o desinteresse dos produtores de cinema por imortalizá-lo na tela.
A França não vendeu barato a perda da colônia e a expulsão violenta de seus colonos. Com sua poderosa armada, embargou o comércio do Haiti, exigindo-lhe 150 milhões de francos de indenização pelos prejuízos causados pela independência, quantia extorsiva considerando-se que, na mesma época, a França vendeu a Louisiana aos Estados Unidos por 80 milhões de francos. Da nascente república norte-americana os haitianos, a rigor, só receberam ajuda de Alexander Hamilton, que colaborou na redação da primeira Carta Magna esboçada por L"Ouverture. Thomas Jefferson, antes mesmo de chegar à presidência, já antagonizava a nascente república antilhana. Tinha 180 escravos; não preciso explicar mais nada.
Com sanções comerciais e outros tipos de boicote, os Estados Unidos forçaram os haitianos a contraírem uma dívida colossal, em bancos americanos e franceses, que chegou a US$ 20 bilhões e só foi ressarcida em 1947. Reconhecer o Haiti como país independente, a Casa Branca só o fez em 1863, ou seja, com quase 60 anos de atraso. Mais um feito de Abraham Lincoln.
Por temer interferência alemã na zona do Canal do Panamá, os Estados Unidos de Woodrow Wilson ocuparam o Haiti em 1915 e lá ficaram durante 19 anos e cinco presidentes, o último dos quais, Franklin Delano Roosevelt, autor de uma nova Constituição imposta aos haitianos pela administração Wilson, de que Roosevelt fora subsecretário da Marinha. A nova Constituição, no melhor estilo uti possidetis, preludiou a degradação econômica e ambiental do país, cujas luxuriantes florestas de mogno e pinho caribenho foram dizimadas em questão de anos.
Para evitar "outra Cuba" nas vizinhanças, quatro presidentes republicanos e três democratas toleraram as atrocidades e as roubalheiras da ditadura Duvalier, que se perpetuou no poder de 1957 a 1986. Era Bush pai quem ocupava o Salão Oval quando o primeiro presidente democraticamente eleito do Haiti, Jean-Bertrand Aristide, foi derrubado em 1991, com a colaboração de Washington. Reconduzido ao governo três anos depois, com o beneplácito e uma coleira de Bill Clinton, Aristide passou três anos tratado como pária pelo Bush filho. Não era o fantoche ideal e acabou derrubado em 2004, no melhor estilo Zelaya, sob as baionetas dos marines e o dedo em riste do embaixador James Foley.
Jared Diamond dedicou 31 das 681 páginas de Colapso para explicar o que aconteceu com o Haiti (e a República Dominicana) desde a chegada de Colombo. Outros estudos existem, eventualmente mais detalhados, mas esse, traduzido há quatro anos pela Record, continua sendo o mais acessível. Sua leitura muito nos ajudará a evitar interpretações equivocadas do aparente beco sem saída haitiano. Quando pensar no Haiti e rezar pelo Haiti, tenha sempre em mente que os maiores flagelos que o atingiram nos últimos 500 anos não foram exatamente causados pela natureza.
Comida para milhões
A ONU terá de alimentar por pelo menos seis meses 2 milhões de haitianos desabrigados pelo terremoto. A estimativa é da Comissão Europeia e da própria ONU. Já funcionam cerca de 450 campos provisórios de desabrigados na capital do Haiti, Porto Príncipe,