PELOS SERTÕES DE VITÓRIA DA CONQUISTA


Vitória da Conquista e seus arredores deve ser conhecida pelos muitos quadrantes da Terra como o torrão natal do bardo Elomar Figueira de Mello, notório músico-poeta-compositor, cujo nome ainda se verá escrito com fios de ouro, não somente pelo talento inigualável dado por Deus, mas também como iminente medievalista. Se suas sabenças a respeito desse enigmático período da História Humana são do tipo ditas acadêmicas, não sei, creio mesmo que não o são.. Porém, Elomar provavelmente seja o artista contemporâneo que melhor capta o espírito da citada época, e, como tal, equipara-se aos clássicos méritos eruditórios. Um romance ou um quadro ou uma escultura pode dizer mais de um período histórico do que as letras e estudos clássicos, isso não é novidade. O mesmo se diz da música. Como descrever a alegria ou a tensão de versos de ternos, quadrilhas ou sextilhas? Sem mencionar que muitos sábios tem a mania do hermetismo, diacho de escrever difícil, empolado e incompreensível de modo a ninguém conseguir entender, exceto aos membros da confraria dos sobrehumanos...

















... eu que sempre pensei: sorte de Vitória da Conquista por lá ter nascido Elomar Figueira!
Pois não é que um desses felizes sortilégios produzidos pelo destino de modo inusitado veio a me dizer que se passou foi precisamente o contrário, e que foi Elomar o felizardo por ter nascido nas redondezas do vale verde do Iuiú, nas barrancas do Gavião? Pois, nesses recantos um desavisado qualquer pode de repente se embrenhar em estradas de areia de ouro, que por aquelas bandas existiram desde de sempre. Mesmo nos dias de hoje, que se pensa que fantasias e encantamentos só tem validade se tiver a comandar apetrechos dotados de chips tecnológicos, se se apurar os ouvidos, é possível ouvir ecos de antigos Acalantos, suspiros de princesinhas debruçadas nos peitorais de janelas de castelos. Assuntemos, pois:

Dia destes, em andanças pelo sertão paulistano, apeei de meu cavalo, o fabuloso Murzelo Alazão, às portas de uma venda a fim de matar a sede. Bem ao lado estava uma magnífica besta ruana, de nobre cor marron, o que fez o Murzelo empinar-se, sacudindo ancas, trincando cascos.
Dentro da venda vim a saber ser a mula ruana de propriedade do poeta Sandoval Flores, cabra arretado, freqüentador assíduo dos salões conquistenses, amigo de reis e andarilhos, que decifra com galhardia os mistérios da arte de Camões e Drummomd. Nada incomum esse encontro, pois nos sertões de Vitória da Conquista e de São Paulo, os eqüinos reinam ao longo da História: poucos hoje em dia se lembram, mas muitos dos tradicionais caminhos urbanos de Sampa foram singrados por tropas de burros e mulas. Aqui mesmo, perto donde moro hoje em casinhola cercada de pés de carambola e futuro abacateiro, passava a Estrada de Nossa Senhora da Conceição, que levava até à boiadeira que seguia para a Baixada Santista pela rota que nos dias atuais, parte segue o trajeto da Rodovia dos Imigrantes. Atenção, jovens e senhores impacientes que nervosamente acionam buzinas sob o menor pretexto (para horror de meu amigo português, o Alexandre Silva, quando nos visitou. Dizia: “Porque gostam tanto de buzinar, ó pá?”): sejam mais discretos, pois podem estar espantando os espíritos de tranqüilos tropeiros, que seguem ainda como guardiães eternos desses Caminhos do Peabirú que nos guiam ainda hoje em dia. Sandoval, que conhece de cor e salteado as rotas do Tropeiro Gonzalin, Bragadá das Treis Pontas, Tiquiano do Rumão, Antenoro e tantos outros, me apresentou a quatro de seus companheiros de estrada: Walter Lajes, Roberto Bach, Paulo Gabirú e Dão Barros.
Entre goles de cachaça catingueira e petiscos de bode frito – esse bode frito estava tão saboroso, que inté Kátya Teixeira haveria de saborear, ela que prefere os bichinhos saltitantes e libertos, a cabriolar entre lajedos – cada um dos amigos foi mostrando traços de sua arte:


- Walter Lajes, cabra de voz rústica e arretada, potente como trovão, mas com a delicadeza que encantou a donzela Kell Lyra, e os dois, além de belíssimos duos, também constroem uma linda famía;



















- Roberto Bach, que dizer de um caboclo sertanês que traz Bach no nome? Eita, que só podia era dar nisso mesmo! Seu nome carrega toda a ancestralidade musical da cor âmbar do medievo, somente aos raros gênios concedidos: desse filão inesgotável podemos encontrar o Vicente Barreto, Luis Carlos Bahia, outros tantos;


- Paulo Gabiru: o caboclo esculpido em pedra bruta pelo sol sertanês, cuja voz singra nossos sentidos como o marulhar de pura água cristalina, imune a quaisquer modismos. Seus cantos medievos e renascentistas – a exemplo de Roberto Bach! – cruzam os tempos com assombrosa fluência;

















- Dão Barros, poeta-escultor-cantador-violeiro, arcanjo revolucionário e visionário, cujo destino seria iluminar outras regiões do Kosmos, levando cantigas e descobrindo formas encantatórias em pedras e troncos, fazendo rebrilhar centelhas divinas em matérias supostamente inanimadas.













E não sei que raio de efeito ótico que me acometeu – efeito dos golezinhos de cachaça catingueira e nacos de bode frito, seria? - , pois reparei que no terreiro da venda assomar a sombra de outro cavaleiro, se aproximando solerte e mesmo nas sombras se entrevia as ferramentas do trajo vaquejano: esporas, peitorais de couro, bruacas, facões, garrucha, chapéu de couro, seguro numa mão a viola, na outra uma batuta de regente. A sombra do cavalheiro parou uns instantes e pude ver as sacudidelas do queixo como a dar sinais de aprovação do que se ouvia. Num instante em que se juntaram em contracanto as vozes, a figura na sombra lentamente esfumou-se. Melhor seria dizer, fundiu à paisagem em torno.

Fiquei a matutar que o gênio que engendra o de Antonio Risério, de Castro Alves, do totem Caymmi, se espalha mundos afora, se traduzindo e reproduzindo em Noel Guarani, Vital Farias, Atahualpa Yupanqui, Cátia de França, Pablo Neruda, Nicolas Guillèn, José Afonso, Sebastian Bach, Manuel de Falla, Haendel, Bartok, Vidal França, João Bá, Os Matutos Modernos, Antonio Pereira, Zé Gomes, Luiz Gonzaga, Villa Lobos, Xangai, Julio Santin e meu conterrâneo Índio Cachoeira, Ariano Suassuna, Tom Jobim, Pixinguinha, Cartola, Dércio Marques, Chiquinha Gonzaga, Florbela Espanca, Antonio Nóbrega, Haydn, Kátya Teixeira a Mulher Estrela, Vivaldi, Zé Côco do Riachão, Pachebel, Dani Lasalvia de voz que parece vir das “cerúleas regiões onde ao avaro e o impuro não é dado entrar”, de Graziela Hessel e Maestro Tóbi a fazer lembrar as Divas de nossa constelação, Patativa do Assaré, etc., cantadores repentistas anônimos: toda essa gente das letras-música-poesia e que traduz o que de melhor a raça humana pode produzir: podem ter sido inspirados pelos portais de Alhambra, bosques vienenses, a esquina da Ipiranga com a São João, os Alpes italianos, manguezais, cafezais, montanhas andinas, os buritizais dos Geraes, os cortantes ventos minuanos ou as secas gretas dos sertões das cercanias de Vitória da Conquista.

O sertão profundo de Vitória e região pode vir a ser um entremeio nos caminhos de pedra e areia, de mundos que supostamente se entrechocam: luzes brilhantes de meio-dia, luzes rubras de fins de tarde a despejar fogo líquido na Lagoa Quadrada; luzes prateadas das noites, alumiam esse mundo de vaqueiros, poetas, peões, donzelas, príncipes e plebeus que se insinuam e se misturam: o mundo de Naninha, de Faviela, de Antenoro, de Gabriela; dos dedilhados poéticos, das cantigas contidas nos tempos, ladainhas profanas, romarias, renascença, parto do amanhecer, brisa, colinas de cavalos fortes, donzelas vestidas de verde: em todos esses timbres e sotaques vários, em todas paisagens e em todos os tempos vemos incorporar-se, indelével, inesquecivelmente, a manifestação do gênio humano; todos se encaminhando na direção da mesma fonte: a mesma onde um veadinho branco “vem suzin beber...


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