Outro dia coloquei na vitrola um disco de música instrumental e ao começar a primeira faixa, perguntei à minha filha de 12 anos o que aquela música lembrava: ela ouviu por alguns segundos e disse na lata: “Cavalos correndo no campo!” Me surpreendi, meio frustrado, mas foi um segundinho só: meu infantil “teste da memória”, embora não fornecesse a resposta desejada por mim, acertara em cheio: eu havia perguntado “o que a música lembrava” e não – felizmente! – “qual é música?”, à maneira do antigo programa da televisão.
“Cavalos correndo no campo” tinha mesmo tudo a ver e errado estava eu em tentar fazer a criança pensar o que eu queria: o que a seus olhos evocava uma “Sinfonia Eqüestre” era mesmo uma “ode à liberdade”, o correr livre e desenfreado contra ou a favor do vento. Esse sentimento de liberdade correspondia, de facto, ao sentimento do autor.
Tratava-se da música “Capuxeta” e quem já viu e ouviu Ricardo Vignini certamente conhece, pois é das preferidas do músico e seu público. Para quem não conhece, “capuxeta” é uma das designações para “pipa”, “raia” ou “papagaio”, antigo brinquedo infantil, cada vez mais em desuso nas cidades, devido à falta de espaços livres e o perigo que representam os carros e a rede elétrica. Também o infame uso do cerol (vidro moído misturado com cola e fixado à linha que tem o objetivo de cortar as linhas de outras “pipas”) representa sérios riscos para motoqueiros, ciclistas, aeronaves e às próprias crianças... Lembremo-nos, porém, de seu significado original, ainda possível nos parques para as crianças que queiram dar um tempo nos games eletrônicos: papel de seda finíssimo, hastes de madeira, tesoura, cola de papel e um carretel de linha de costura e está pronto o desafio de disparar a correr, levantar vôo e manter no ar a “capuxeta”, pipa, papagaio ou raia, num exercício de habilidade e equilíbrio! Foi esse resgate da alegria, pureza e liberdade que o músico magnificamente resgatou em céleres toques da viola dinâmica, cavaquinho Malagoli e violão slide, que por vezes lembram os banjos dos antigos seriados de faroeste, como bem deve recordar o guru ZéMaria... fechemos nossos olhos, livramo-nos dos pré-conceitos para captarmos a universalidade da alegria, da pureza e da liberdade, possíveis em qualquer época ou lugar.
“Capuxeta” é a faixa que abre o CD “Na Zoada do Arame”, estréia em trabalho solo do guitarrista, violeiro, compositor, pesquisador, professor de música e produtor musical Ricardo Vignini, componente do grupo Matuto Moderno. (O “Matuto” há mais de dez anos trouxe a música caipira de raiz para junto dos jovens, sem precisar recorrer aos figurinos agro-boys... Eletrificaram clássicos do cancioneiro caipira tradicional, abrindo novas perspectivas, sem cair no vulgar... Ixe, mas isso já tema para outro post!)
Voltemos ao Na Zoada do Arame: não é mais um disco de viola caipira, o instrumento que de uns 20 anos para cá saiu do nicho regionalista para ganhar salas de concerto, graças ao trabalho de muita gente talentosa, destacando-se Renato Andrade, Almir Sater, Paulo Freire, Levi Ramiro, Roberto Correa, só para citar alguns. Embora jovem em anos, Ricardo tem vasta trajetória e acumula experiências na guitarra de Jimmy Hendrix, Led Zepelin, entre outros monstros do rock, até se encantar pela cultura popular e juntar-se a Zé Helder, à cantora, pesquisadora e instrumentista Kátya Teixeira “katchêrê”, o mestre violeiro Índio Cachoeira - de quem é discípulo e produtor -, o bluesman novaiorquino Woody Mann , entre outros. Os dois últimos citados, por sinal, participam do disco.
“Na Zoada do Arame” é um disco de cordas dedilhadas (cordofones, como dizem os portugueses) e ao longo de suas 11 faixas, proseia e brinca com vários estilos e cenários da viola regional brasileira desde os pampas, passando pelo Pantanal, Pontal do Paranapanema, e de quebra flerta com a gaita blues, lap-steel e piano.
Enfim, é um disco para se escutar e apreciar muitas vezes; que mostra as múltiplas possibilidades da viola caipira em diálogos vivazes com outros instrumentos. Disco para ser estudado por músicos e aprendizes, pujante de linguagens e texturas que eu, mero ouvinte, apenas intuo: uma pitada para aguçar a curiosidade: prestem atenção a viola caipira elétrica e a cabacítara, invenção do luthier e violeiro Levi Ramiro (grande Levi, grande filósofo, cuja antológica frase faz história: “Quem tem tempo caga longe!”). De uma cabaça, Levi fez uma cítara, que Ricardo executa com galhardia.
Minha faixa favorita é “Alvorada”, que deveria se chamar Alvorada em Junqueirópolis, ecos de minha infância naquele lugar de amplos horizontes, onde justamente nas alvoradas a convergência do céu com a terra nos convida a mergulhar nos mistérios e encantamentos da vida...