Nas ruas, é muito comum: alguém se aproxima de você, bem ou mal vestido, pede desculpas antecipadas pelo seu tempo e lhe conta uma estória terrível e lacrimosa – “não come há vários dias; aluguel atrasado, filhos passando fome; desempregado há muitos anos, a família inteira e ele próprio fazendo uso de medicamentos caríssimos, etc., etc., e então pede uma moeda, qualquer valor, para comprar um pão com manteiga, assegurando que Deus vai reembolsar em dobro; se você demonstrar certa hesitação, o apelo se torna mais veemente e diz que poderia estar roubando ou matando, mas que prefere pedir...” Nas grandes metrópoles brasileiras, todos tem uma ou várias experiências dessas para contar. Por mim, tenho uma clara posição: procure o serviço social e as muitas entidades assistenciais espalhadas pela cidade, pois estão preparadas para atendê-lo de maneira correta, etc., etc. Não é raro a pessoa me deixar falando sozinho dizendo “..valeu, brigado, viu?” ou simplesmente interromper com vociferadas sugestões, impublicáveis, sob pena de ser convocado a se explicar perante a Editora Chefa, que zela pela decência lingüística do ser-tão....
Pois há pouco dei de cara com uma situação dessas: um senhor, louro, de meia idade, vestido de modo simples e decente, me aborda a caminho do trabalho: “tu hablas espanhol?”, ao que respondo, caprichando em meu portunhol: “No, no hablo, pero, comprendo...” Entonces, ou melhor, então, ele me conta a história que a principio, com um suspiro, julguei clássica, porém ouvi-o com toda atenção. Argentino de Buenos Aires, ferramenteiro de profissão, veio a São Paulo – Diadema, para ser mais exato – em busca de trabalho, estando hospedado em casa de um primo de sua mulher brasileira. Entrou em contato com o Sindicato dos Metalúrgicos e pediram que fosse até lá, no Bairro da Liberdade, para a entrevista e possível colocação... Ele está há algum tempo sem dinheiro algum. Mas se sentiu constrangido em pedir ao seu anfitrião que lhe desse também o dinheiro da passagem de ônibus, acreditando que no Metrô lhe deixariam passar, o que acabou não acontecendo... Entonces, digo, então, pediu-me que, por favor, se eu tivesse disponível, que lhe arranjasse o dinheiro, pois havia marcado hora – 08:00 e já eram 07:30! – e temia não chegar a tempo e perder uma oportunidade!
Bem, eu já estava com o discurso na ponta da língua: “Meu amigo, procure o Serviço Social, onde competentes, simpáticas e distintas Assistentes Sociais o atenderão com a maior presteza desse mundo e, dependendo das circunstancias, pode até ocorrer que o senhor tenha o privilegiado com um lindo sorriso, quizas uma piscadela!” Porém, sei lá porque, algo nele me desconcertou ou estava por demais convincente e pensei comigo: “Ora ora, ele pode muito bem estar mentindo, porém, se o for, é um ator e tanto e isso tem seus méritos..”
Lembrei-me da viagem a Olinda, Pernambuco. Não sei de onde que tenho cara de turista, mas a cada dois metros me deparava com um guia oferecendo seus serviços, ao que eu declinava, pois tinha tempo de sobra e só queria andar e descobrir tudo por mim mesmo. E me livrava, olimpicamente, avançando entre o exército de guias frustrados...
Súbito, um garoto, uns doze ou catorze anos, saltou à minha frente e imediatamente começou dizendo que eu estava diante de uma igreja construída em 1560, por ordem de Mem de Sá, e parte do calçamento era original! E a casa do primeiro pároco ainda estava de pé, ficando na rua de baixo; se eu quisesse fotografar ele me levaria até lá.. Ah, e aquela casa lá no alto, é a casa de Alceu (Valença)... Enfim, antes que eu abrisse a boca ele já me atulhava de informações precisas e abundantes, de modo que acabei aceitando seus serviços, e de bom grado, pois ao final, indicou o modo mais barato de retornar ao Recife, onde estava hospedado... Lembrei disso enquanto olhava aquele homem de olhar aflito e lábios trêmulos de ansiedade e o rosto completamente ruborizado e para encurtar a história, acabei deixando de aplicar o infalível discurso da Rede Assistencial ou da idéia de que estou alimentando vícios. Eu tinha no bolso o dinheiro quase exato da passagem do ônibus e imaginando que o mesmo não me faria falta a ponto de me deixar constrangido, lho dei. Qual não foi minha surpresa quando o argentino me abraçou e me tascou um beijo na bochecha.
Jesus! Beijo de homem, de manhã cedo, e ainda por cima de argentino, nossos eternos rivais sudamericanos! Não, não mereço isso!
Lá se foi o hermano caminhando apressado para o Metrô Jabaquara, ali perto. Verdadeiramente, um irmão, cuja sorte se confunde com a de tantos brazucas mundo afora. E ele nem teve tempo de vir com aquela história de que Maradona é melhor que Pelé!... se houvesse tempo, poderíamos tomar uma cerveza, e prosseguir nossas antigas contendas: diria-me ele: “nosotros tenemos Atahualpa Yupanqui!" Dedo em riste, eu replicaria: “E nós temos Cartola! E katya Teixeira! E...”
Reforços e mais reforços das esquadrilhas culturais dos países em saudável litigio surgiriam por todos os lados, generais e coronelas da literatura, da musica, das artes plásticas: para evitar a destruição mútua via holocausto nuclear em tempos de fim de mundo, proclamaríamos la unidad latino americana!
SER-TÃO CONVINCENTE
Passeios na Metrópole
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