Minha queda pelo humor e pela ironia em relação aos temas mais diversos é conhecida. Chega um ponto na vida da gente que tudo começa a ser questionado, e o pior, por nós mesmos. Talvez seja aquela famosa busca do porquê das coisas, como eu recebi esta influência, porque eu gosto disto, porque eu gosto daquilo, de onde vem este apreço por contar histórias, causos, coisas engraçadas, um montão de perguntas.
Parece que de repente nasceu dentro da gente uma criança que quer saber tudo, pergunta tudo e nos deixa em situações embaraçosas ao escarafunchar as respostas com aquela lógica infantil, Crianças tem um montão de emoção, mas tem também uma lógica irrefutável.
Bom outro dia destes encontrei no meu baú de respostas uma dupla sertaneja (claro sempre elas), e que tocava músicas com o jeito simples do homem do campo, coisas bem caipiras, mas que passavem de forma engraçadíssima e muito crítica por temas importantes, inclusive de ordem política: Alvarenga e Ranchinho. Caramba achei o elo perdido da minha veia cômica!
Fui atrás da sua obra, das suas letras, já que muito da qualidade destas gravações se perdeu no tempo, mas não na minha memória que apesar de meio judiada ainda guarda coisas muito boas.
A nossa Editora-chefe aqui do Sertão, a Fernanda, gosta sempre de dizer que tem um pedaço do meu cérebro que só guarda estes temas, meio engraçados, meio picantes, mas com a ingenuidade do chapéu de palha, das calças e botas de Jéca – taí, acho que achei.
Culpa deles talvez, Murilo Alvarenga e Diésis dos Anjos Gaia, o Ranchinho porque o outro dispensa apresentação do óbvio pseudônimo. Será deles a culpa por me tornarem um cara que faz graça com tudo, até com coisas sem graça como a política Brasileira?
O curioso é que estes dois, dizem as más línguas, nunca viveram na roça! Eles tem sim uma ligação muito forte é com a capital, São Paulo, onde fizeram até o primeiro filme “falado” que aqui se fez, o “Fazendo Fita” de 1935. E seu talento foi muito aproveitado no cinema nos anos que se seguiram, como "Tererê não resolve" (1938), "Laranja da China" e "Céu Azul" (1940, ano que nasceu minha mãe, dona Cida da Viola)!
Outro fato curioso é que houveram na verdade três Ranchinhos na história desta dupla, sendo o segundo Delamare de Abreu, irmão de Alvarenga por parte de mãe e o terceiro (que por ironia era chamado de Ranchinho segundo) foi Homero de Souza Campos que foi até o final da dupla que ocorreu com a morte de Alvarenga em 1978.
A dupla portanto, apesar de composta de 4 membros, tem uma respeitável carreira e respectiva discografia: 50 anos de carreira, 30 LPs, 600 discos de 78 rotações!
Eles satirizavam tudo e muitas vezes tinham textos próprios com piadas, acompanhados sempre pela dupla viola/violão prá fazer o “fundinho” adequado. Em 66 fizeram uma paródia da música “Disparada” de Geraldo Vandré o que lhes rendeu uma série de rótulos inflamados dos Revolucionários que estavam literalmente "de plantão", já que eram os tempos do AI5 e da Ditadura Militar brava no nosso Brazilzão.
Com a união a Ariowaldo Pires, o "Capitão Furtado", formaram no rádio a “Trinca do bom-humor” em 1936. Zombaram de tudo, do divórcio com a música
“O divórcio vem ai”:
[Falando]
"Êta mundo véio, hein, cumpadre?
É...
Violinha boa, essa, hein?
Ah...
Especiar memo, hein
Especiar de boa, cumpadre
Ô cumpadre,
Ahn?
Sabe de uma notícia?
Ahn?
Tão dizendo que o divórcio vem aí...
Uai, o que é divórcio, cumpadre?
Num sabe o que é divórcio, rapaz?
Não!
Divórcio é ansim mais ou menos, né, pre exempre
Vancê casa cuma mulher, mais vancê vai,
num gosta dessa mulher, né, então vancê larga dela
e casa co outra, depois então vancê pre exempre num gostô mais dessa outra, vancê larga dessa e casa co outra
E ansim por endiante
Ansim que é divórcio, é?
O divórcio é ansim
Ô, que coisa, né cumpadre
Tá torto, hein, cumpadre?
Tá torto!
Ô cumpadre, falando em divórcio
Eu tenho uma letra que eu inventei dessa negócio do divórcio vem aí
É?
Cê qué fazê um duete aí?
Ora, cumpadre, vambora
Então duete aí
Eita violinha boa, hein, cumpadre?
Dá inté vontade de dançá
Vamo lá, cumpadre"
[Cantando]
Quando eu vorto do trabaio
Minha muié garra-se ri
Vem logo com baruieira
Fala arto preu ouvir
Deixe estar que eu fico livre
O divórcio vem aí
"Êta mundo
Violinha especiar de boa!"
E eu vou lhe respondendo
Não percisa lastimar
Se o divórcio vem aí
Tomara que venha já
Tem muita mulher no mundo
Que tão doida pra casar
"Êta!"
Minha cunhada Costina
Que é mulher do seu Hercílio
Foi logo mirá no espeio
Escolher um bom vestido
E começou a treinar
Pra arranjar novo marido
"Tá doida, excumungada, hein?
Puxa na viola, cumpadre"
O divórcio vem aí
Vem tirar os desengano
Conheço muita mulher
Que já anda suspirando
É divórcio toda hora
É marido todo ano
"Muda de marido como quem muda de camisa, hein?
Tá torto!
Vamo otro, cumpadre"
Quando o divórcio vier
Vai ficar mulher de sobra
Eu vô me divorciar
Me livrar de duas cobras
Cascaver da minha mulher
Jaracuçu da minha sogra
Zombaram da troca de moeda com “Você já viu o Cruzeiro” (mal sabiam eles quantas vezes nossa moeda ainda seria trocada), do racionamento de gasolina na Guerra com “Racionamento de gasolina” (e de novo mal sabiam eles quanto nossa gasolina ainda seria racionada):
A crise da gasolina
Já tem dado o que falar
Vou dizer argumas coisa
Que eu já pude obeservar
Quem andava de ortomóver
A gastar a gasolina
Pra mode o racionamento
Hoje vai é na botina
Com a farta da gasolina
Muita gente virou atreta
Hoje tão fazendo força
Andando de bicicreta
Quem tinha barriga gorda
Hoje tem barriga fina
Os cuitado tem sofrido
Com a crise da gasolina
Nosso povo é bem ordeiro
Vai se colocar na fila
Leve o tempo que levar
Güenta firme, não estrila
Eu também entrei na fila
Esperei um dia inteiro
Pois perciso gasolina
Pra ponhá no meu isqueiro
Os chofer que são casado
E namora nas esquina
Chega em casa atrasado
Diz que farto gasolina
Pra esses moço grã-fino
Perseguido de muié
Chegou a vez de dizer
Eu quero ver é à pé
Eu tô queimando as pestanas
Estudando um novo invento
O artomóve-jangada
Que será tocado a vento
Eu peguei arco motô
E ponhei no calhambeque
Ele saiu cambaleando
Ficou num baita pileque
Eu num ligo pra essa crise
Deixa os outros que se amole
Pois invês de automóve
Eu vô é andá de trole
Bem diz que o brasileiro
É povo que tem engenho
Em lugar da gasolina
Inventaro o gasogênio
Não é sensacional como estes temas perduraram e ainda são atuais 81 anos depois?
Foram perseguidos pela Censura e até presos várias vezes, uma delas por causa da música “História de um Soldado”. Nesta detenção foram levados pela filha de Getúlio Vargas à presença do então Presidente para que apresentassem pessoalmente a tal paródia. Getúlio riu muito e os liberou sem ver ofensa na letra desta canção.
Na minha opinião a mais famosa de todas é realmente "Romance de uma caveira", que até hoje aparece por aí nas vozes de diversos intérpretes, uma pérola:
Eram duas caveiras que se amavam
E à meia-noite se encontravam
Pelo cemitério os dois passeavam
E juras de amor então trocavam.
Sentados os dois em riba da lousa fria
A caveira apaixonada assim dizia
Que pelo caveiro de amor morria
E ele de amores por ela vivia.
Ao longe uma coruja cantava alegre
Ao ver os dois caveiros assim felizes
E quando os dois se davam beijos funebres
A coruja batendo as asas, pedia bis
Mas um dia chegou de pé junto
Um cadáver novo de um defunto
E a caveira pr'ele se apaixonou
E o caveiro antigo abandonou.
O caveiro tomou uma bebedeira
E matou-se de um modo romanesco
Por causa dessa ingrata caveira
Que trocou ele por um defunto fresco
Bom gente vou deixar aqui um desafio aos leitores do nosso BLOG: quem postar a letra de “Você conhece o cruzeiro” ganha o título de mestre em Alvarenga e Ranchinho e um beijinho da Fernanda (se preferir pode ser do Joca o do Zé Maria, gosto não se discute)!
Tá lançado o desafio, que aliás foi outro estilo de paródia em que esta dupla sempre brilhou.
Puxa, escrever tudo isto me deixou com muita saudade da infância, do rádio de válvula com seu típico chiado e daquele cheiro de café e cigarro de palha que estavam sempre perto neste momentos. Vou durmir e sonhar com este tempinho bom. Um beijo “romanesco”.