Meu fascínio pelo que hoje chamamos de arte popular decorre especialmente de uma imagem de infância: num fim de semana em Junqueirópolis, extremo oeste paulista, uma dupla de repentistas trocava versos, acompanhados por roufenhos toques de viola, como nunca tinha ouvido antes – eu conhecia o toque de viola, mas da típica caipira, de timbre tristonho e nostálgico. Mas aquelas eram violas diferentes, de bojo maior, “braço” mais estreito e cravelheira comprida, quase do tamanho do braço. Mas o que chamava mesmo a atenção era o som, áspero, porém, incrivelmente melodioso, semelhante as vozes dos cantadores, monótonas, entretanto agressivas. Por ali não havia repentistas, aquela região fronteiriça abrigava várias tradições violeiras advindas dos pampas, das geraes, de Goiás, do Mato Grosso antes da divisão. Violas nordestinas praticamente nunca eram vistas. Talvez por isso, tenha ficado forte na memória aqueles trinados, a ligeireza dos versos; tudo aquilo me marcou profundamente. Embora não conhecesse diretamente, curiosamente me reconheci nos mesmos, o que era bem verdade, pois tinha latente circulando por minhas veias, o genoma cultural herdado de meus pais sertanejos. De algum modo, retomava um caminho que atravessava desertos, montanhas, pântanos, florestas, guerras, história.
Desde sempre os cantares populares sempre fizeram parte de minha vida: as Folias, as cantorias que sempre tinham vez em nossa casa, até que circunstâncias econômicas nos forçaram a fazer parte das levas de agricultores saídos do campo para a Capital.
A arte popular é mais que entretenimento – embora seja esse o objetivo primeiro. Nas comunidades mais simples, não massificadas e dominadas pela gigantesca onda consumista, o artista – cantor, pintor, artesão, poeta - era simplesmente mais um membro da comunidade, dotado de certos dons. A arte era um partilhar, expressão de uma capacidade que nos parecia segura e inalienável: trocar experiências. Até mesmo a comunicação com o Divino era direta, sem intermediários. A evolução cultural e tecnológica primeiro retirou do Homem a capacidade de comunhão direta com Deus, criando as figuras dos Sacerdotes; por fim tornou possível a eliminação da necessidade de comunicação direta entre as pessoas; o telefone, o email, etc., tornam desnecessária a comunicação direta e ao vivo. Não se trata de julgamento contra ou a favor da tecnologia: as vantagens são inumeráveis, nos faz ganhar tempo, idéias e notícias circulam rapidamente. Porém, como grande parcela da humanidade tem vocação sedentária, nos acomodamos a tais facilidades, nos afundamos em compromissos e terminamos por perder contato uns com os outros: fico meses, até anos sem ver amigos que moram a poucas léguas de minha casa!
Como medir o que é essencial e o que é supérfluo? Esta resposta “não está soprando com o vento”, mas se encontra dentro de nós mesmos: a experiência direta do viver é uma ferramenta básica. Lembro-me de uma frase atribuída a Hemingwey: “a literatura tem mais valor quando gerada a partir da vivência direta.”
Volto, então, ao tema do “artista” e seu papel na sociedade: o verdadeiro artista popular não é o ser apartado, elevado à condição mitológica de estrela, com características sobre-humanas; seu ofício é divertir, sim, mas também ensinar, dividir com todos da comunidade o que generosamente recebeu da mesma, através das tradições, da história de cada lugar, das experiências por todos compartilhadas. O artista diverte, mas ensina, é o ponto de intersecção entre os membros do grupo. O artista popular é sempre aquele que estabelece como diretriz a comunhão permanente com suas origens – sem naturalmente abdicar da procura pelo novo, pois tradição não é fossilização; é vida e movimento. Lembrando Pablo Milanês, traduzido por Dércio Marques:
“Pobre do cantor que não se afirma
que não mantém seguro
seu proceder com todos”
Mestre de reisado, José Pereira Lima
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Deverá ser lançado brevemente o novo disco de Kátya Teixeira, "Feito de Corda e Cantiga" – aguardem o anúncio oficial por parte do Zé Maria, memorialista do ser-tão paulistano, membro do staff da cantora, pesquisadora, instrumentista e eterna musa do ser-tão.
Sem delongas, segue a dica: vale a pena. Aos que já conhecem seu trabalho saibam que ela segue um rigoroso itinerário que de certo modo complementa as etapas iniciadas com Katchêrê e Lira do Povo. Katya Teixeira é uma artista que traduz o sentimento de síntese, estabelece uma real e instantânea comunicação entre a artista e quem a ouve: ora, o cantar mestiço, a índia, a negra, a guerreira do canto forte; ora, a delicadeza da voz cristalina e harmônica. É sempre o cantar que emociona, vibra, em cada célula do seu sere toca a todos em volta: canto de suor, de sangue, de alegria