A sabedoria “caipira” pode não estar qualificada entre as grandes correntes filosóficas do pensamento ocidental, mas seguramente se insere entre as atividades humanísticas desenvolvidas para auxiliar o Ser Humano em sua trajetória, afinal, a “Sofia” (literalmente “sabedoria”) está presente no mundo desde a Criação – “...existe nela, Sofia, o caráter de plasmadora do Universo; é o Espírito Amigo dos homens, do Poder Divino, um eflúvio da glória do Todo Poderoso, resplendor da Luz Eterna...” (C.G. Jung). O estudo da sabedoria, seja denominada culta ou popular/leiga, tem como finalidade servir de instrumento para que o Homem usufrua da melhor maneira possível essa dádiva dos Deuses, a vida, especialmente captando e potencializando os recursos disponíveis ao redor de si para compreender o Sentido da Existência.
Um amigo português, António Alexandre Silva, um grande estudioso da história e dos costumes de sua gente, me contou a seguinte anedota sobre os alentejanos, que, segundo ele, podem ser considerados como os “baianos” de lá, pois o Alentejo, ao sul do país, dominado por monótonos campos de cultivo e calor abafado, ajudaram a criar por lá o mesmo estereótipo do povo da terra de Caymmy, tão difundido para o bem ou para o mal, mas de riquezas extraordinárias, seja na música, na culinária, na linguagem.
Diz a anedota citada por Alexandre: “...duas raparigas da cidade, andando de automóvel pela zona rural, avistaram dois alentejanos e combinaram entre si se divertirem á custa dos “caipiras”. E lá foram:
- Rapazes, vimos vocês e caímos de amores! Nunca vimos gajos tão formosos e gostosos e queremos vocês de qualquer jeito! Vocês topam? – os dois alentejanos, agradavelmente surpresos, não titubearam:
- Sim, sim, queremos! Agora!
- Calma, rapazes! Temos que nos preparar. Façam assim: estão vendo aquelas moitas de bambu, a beira do ribeirão? Pois vão lá, tirem a roupa e nos esperem, pois já estaremos lá! Aguardem cinco minutos!
E lá foram os dois. Despiram-se e ficaram a espera. Aguardaram com expectativa juvenil os tais cinco minutos regulamentares e nada das raparigas aparecerem. 10, 15 minutos, nada, a expectativa juvenil já quase completamente arrefecendo! 20 minutos, 30 minutos e os dois se entreolharam, naquele mútuo entendimento onde as palavras são desnecessárias:
- Compadre, acho que as raparigas nos fizeram de tronchos! Não vão aparecer coisa nenhuma!”
- Mas, o que faremos? Olhe para nós, aqui, pelados...” - o outro acendeu um cigarro:
- Ora, compadre! Já que estamos aqui, na moita, então vamos cagar!”
(A história poderia ter sido contada pelo grande violeiro, cantador e contador de causos, Levi Ramiro. É dele – que por sua vez atribui a autoria a seu pai – a incrível história, verdadeiro tratado de filosofia caipira, onde o matuto resume em uma frase o que custaria anos de estudo ou uma colheita de maçãs desabada sobre a cabeça: “quem tem tempo caga longe!”)
Levi Ramiro, cantador, violeiro, compositor, contador de causo, luthier, aqui com uma invenção sua, a cabacítara
Dos confins do Alentejo, talvez tenha vindo por engano nalgum navio, algum alentejano desgarrado – os alentejanos não costumam migrar, sendo aferrados à sua terra. Mas esse provável desgarrado talvez tenha trazido com ele uma “viola campaniça”, comum no Alentejo, instrumento bastante parecido com nossa viola caipira. Segue abaixo, reprodução de parte de matéria do site português, Moderniça, por Ernesto Veiga de Oliveira, especialista em violas portuguesas:
"A viola campaniça é um dos vários tipos de cordofones tradicionais portugueses, típico da região campaniça alentejana, o Campo Branco do Baixo Alentejo. É um cordofone com dez cordas (cinco ordens de cordas duplas), de enfranque muito pronunciado, e que se crê que tenha evoluido a partir da vihuela de mano medieval. Tem a seguinte afinação (da corda mais aguda para a mais grave): ré ré - si si - sol sol - DÓ dó - SOL sol.
Até à década de 1950, a viola campaniça era comumente utilizada no acompanhamento do cante alentejano e era o principal ou único acompanhamento dos “balhos”, os bailes realizados ao fim-de-semana ou nas festas. A sua afinação está bem adaptada à exposição da melodia das modas e cantigas alentejanas, com o toque em intervalos de terceiras, sendo que as cordas mais graves são geralmente tocadas soltas, fornecendo permanentemente a tónica e a quinta.
Com a progressiva eletrificação das aldeias do interior, o advento dos conjuntos de baile e a maior relevância que foi ganhando o acordeão nas funções de animação das festividades, as próprias alterações nos gostos musicais de grande parte da população e no maior acesso a outras sonoridades, a viola campaniça perdeu gradualmente a sua importância e considerava-se que este instrumento se encontrava praticamente extinto, que restavam poucos exemplares e quase nenhum tocador vivo..."
Lá na terrinha como cá, assim como em todos os quadrantes da terra, violas e violeiros fazem história....
Faço questão de ressaltar que a provável alusão da semelhança da viola campaniça com a caipira nada tem de “científica, está calcada puramente na observação visual. O espaço deste blog é muito pequeno para um alongamento de tais questões. Acredito que nossa viola caipira, sua construção e afinações são criações genuinamente brasileira, sendo descendentes diretas das violas oriundas de diversas regiões de Portugal – beiroa, braguesa, trasmontina, campaniça, amarantina, toeira, de arame, etc. Todas descendentes da vihuela espanhola, tendo como característica principal dez cordas ou cinco cordas duplas oitavadas. A guitarra portuguesas de seis cordas foi introduzida em Portugal através da França, mas minha ignorância musical não me permite afirmar que esteja na origem direta do nosso violão. O estudioso Ernesto Veiga costuma agrupar estes instrumentos na curiosa denominação “cordofones beliscados”, muito apropriadamente.
Na primeira postagem do ano, um abraço cordial, fraterno, caloroso do povo do ser-tão paulistano a todos e todas!
Alguns exemplos de violas, daqui e de lá:
viola campaniça
viola de fandango