O jornalista Washington Novaes diz que costumamos olhar as sociedades indigenas pelo que eles não tem e nunca pelo que eles tem. É uma conclusão que parte do ponto de vista do pensamento europeu ocidental pós revolução industrial e o espaço aqui é curto para análises mais aprofundadas. Partimos, então, de uma constatação óbvia: uma sociedade com milhares de anos de existencia, tendo sobrevivido, deve ter lá os seus méritos...
Métodos de análise, principalmente as ideias de Levi-Strauss e aqui entre nós do inesquecível Darci Ribeiro nos ensinaram os estágios civilizatórios de um povo decorre especialmente da necessidade; isso nos dias de hoje é quase uma obviedade, mas não há muito que a raça era fator determinante e povos inteiros foram exterminados por supostamente pertencerem a raças ditas inferiores. Demorou, mas o conceito de cultura ganhou dimensões além da técnica e do verniz palatável ao gosto mediano... E lentamente, começamos a recuperar o pouco que sobrou do imenso patrimônio da América pré-colombiana: sua culinária, sua música, suas técnicas de manejo ambiental que não degradavam as florestas e sua riquíssima mitologia.
Foi com imensa expectativa que ouvi o novo CD do violeiro, compositor e luthier Levi Ramiro, denominado Na Trilha dos Coroados. Chamou-me especialmente atenção, pois no lugar onde nasci, lá no Pontal, sempre se ouviu falar nos Indios Coroados (ou Croados), que habitaram num passado longínquo e mitológico uma região imprecisa abarcando partes do Pontal, desde a Serra do Mar até a divisa de Goias. Os Coroados não eram uma etnia, mas sim como eram reconhecidos os indios que cortavam o cabelo formando uma coroa; poderiam ser de qualquer das etnias a seguir: Puris, Xumetós, Corópos, Pitás, Goitacáz, Araris, kaicang ou mesmo a mestiçagem aleatória entre eles; fato inegável é que os Coroados ou croados fazem parte do imaginário da história do interior do Estado de São Paulo e quando criança ouvi muito causos onde os "croados" eram personagem,quase sempre um aliado do herói, como o guia ou o curandeiro, mas, não poucas vezes no papel de vilão. Conta-se que muitos indios, de outras partes (Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul), sem qualquer ligação com esses habitantes primitivos do estado de São Paulo, também eram denominados "coroados" pelos portugueses, bastava a coroa do corte de cabelo...
Ao chegar no nome Kaicang, passou a me interessar diretamente, pois nasci à poucas dezenas de metros de um ribeiro com esse nome, apesar de no dialeto capiau pontalense a pronuncia correta ser "córgo", "corgo Canganha", para ser mais exato...
Levi Ramiro, com as violas que ele mesmo constrói, mais um time de músicos do melhor naipe, faz uma viagem poético-musical por toda a vasta região, mostrando as belezas ainda presentes e recriando/refazendo percursos e assim contando parte da história, seja dos indios ou mesmo de alguns de nós ou dos elementos naturais, as referências às batalhas, as entradas (bandeiras), as guerras, a onça, os trilhos, a espiritualidade, os rios, as estações abandonadas...
Durante a trajetória de caminhada pelos diversos temas, conhecemos alegrias, festanças, tristezas, perdas, sentimos saudades... Mas não é uma viagem melancólica, pessimista, de ódios ou de revoltas; é simplesmente uma viagem pelo conhecimento tão necessário em tempos em que almejamos, enquanto nação, ladear ombro a ombro com as potencias mundiais: progresso, sim, mas sem jamais esquecer quem somos e de onde viemos...
Uma observação:
Levi parece não aprovar o nome Rio Feio, pois para ele, "...as águas limpidas e frias e cercadas de natureza, contradizem o nome dado a ele." Até onde minhas lembranças me levam, a alcunha "Feio" não era por conta de sua feiúra - se é que tal é possivel! - mas sim devido a sua sinuosidade e perigos iminentes. Contava meu pai que as altas copas de árvores formavam um túnel verde escuro e pescar nas suas margens exigia respeito e conhecimento das artimanhas do senhor daquelas paragens: o rio e sua temível hóspede, a sucuri. Como andará hoje em dia, o Rio feio? Haverá desmatamento em suas margens? Muito provável. Então, o pobre deve estar mesmo se sentido feio, despelado e assim, não assusta mais nem criancinhas antes do sono...
Que o trabalho de Levi Ramiro seja ouvido e refletido, que mostre a todos a história de um lugar onde a beleza é guerrelheira pertinaz. Junqueirópolis, terra natal do grande Indio Cachoeira já foi chamada "Cidade Verde", por conta da exuberância de suas florestas de madeiras de leis; Flora Rica, pertinho de Irapurú, terra de de outra fera da viola, Julio Santin, tem um nome bastante apropriado, ao qual num tempo não tão distante poderia ser acrescentado Flora e Fauna Ricas...
Serviço:
Musicos participantes: o também violeiro Ricardo Vignini; Carlinhos Ferreira na percussão e efeitos; Duo Portal percussão, efeitos, flauta, kalimba; José Esmerindo, violão; Ana Colomar, violoncello; Gustavo Lima, clarinete; Adriano Grimberg, piano; Ze Helder, Shaiene,Tania Grimberg, vocais.