A ULTIMA VIAGEM DOS INTERPRETES DO BRASIL

"Sino da capela, dobra em oração Cigarra cantando tarde de verão Cabocla sambando, noite de São João Esse é o Brasil Caboclo Esse é o meu sertão" OU: "Tenho meu cavalo preto Com o nome de ventania Um laço de doze braça O couro de uma novilha Tenho um cachorro bragato Que é pra minha companhia Sou um caboclo folgado Ah, eu não tenho familía"
Da mesma forma que Adoniran Barbosa foi o maior interprete do povo paulistano - sim, "povo paulistano", compreendendo como o"espírito", linguagens e costumes específicos da metrópoles repleta por "tribos" -; Cartola, porta-voz de uma poesia musical do povo brasileiro - sim, "povo brasileiro", pois com sua lírica ultrapassou fronteiras sociais -, a dupla sertaneja Tonico e Tinoco certamente entram para a história como os maiores interpretes da música caipira, e por que não?, do Brasil, compreendendo nesse aspecto algo que poderíamos chamar "brasilcaipira", um complexo universo seja territorial, de linguagem, de sentimentos que nada tem a ver com a figura do matuto atrasado e tomado de vermes ou, pior ainda!, da ridicularização que o pobre caipira é submetido por ocasião das festas, com calças no meio das canelas ou remendos nos cotovelos, joelhos e bunda, além do estraçalhado chapéu de palha e falhas nos dentes. Caipira de verdade veste terno, se barbeia, passa talco e perfume, põe chapéu e faz bonito na cidade com sapatos impecáveis de lustro com a graxa que ele mesmo manipula.
Cada obra da dupla tem uma história (ou causo, como eles deveriam preferir), portanto seriam precisos grossos tomos para caber-lhes a grandiosidade. Pra começar, fundaram um gênero, a moda de viola, para diferenciar da expressão "sertaneja" (desde pequeno, talvez por influência de meu pai pernambucano, que sempre considerei como sertão o interior do nordeste) ou dos cururus, catiras e cateretês que vigoravam no interior de São Paulo quando eles surgiram. Brasil Caboclo e Cavalo Preto, das quais reproduzimos trechos na abertura deste texto são dois clássicos das centenas que produziram, interpretando fielmente o universo caipira tanto ou melhor que qualquer estudioso de cátedra universitária. Mereceriam um honoris causa, sem dúvida...
Reproduzimos abaixo trecho do artigo do jornalista JULIO MARIA, publicado no jornal O Estado de São Pauli, no último 05/05/2012. A ULTIMA VIAGEM Sem Tinoco, a cultura caipira perde um de seus últimos e mais legítimos representantes Por Julio Maria
Quando se juntava ao irmão Tonico, Tinoco (D) intrigava pela unidade das duas vozes Aquele dia era como se o caboclo soubesse que a marvada o esperava num canto qualquer, com o mesmo espírito estraga-prazeres que teve com o amigo Chico Mineiro naquela festa boa lá pelo sertão de Goiás. A bicha era tinhosa. Depois de Chico havia sido o mano Tonico. Ele não merecia aquela rasteira da morte, tombo mais besta na escada do prédio onde morava, em 1994. Só tinha 77 anos, um sorriso de moleque e uma doçura de mãe. A voz de Tinoco nunca mais foi a mesma pela simples razão de que não existia sozinha. Sem Tonico, Tinoco tinha meia voz. Podia ser Tião Carreiro a seu lado que não saía igual. Sem Tinoco, Tonico se sentiria da mesma forma. Antes de serem grandes, ainda quando eram João e José, o povo de Botucatu, no interior de São Paulo, dizia que os dois juntos tinham não duas, mas uma voz só. Ninguém conseguia explicar como aquilo acontecia. Eram irmãos, poderia ser carga genética. Mas se fosse só isso, por que outros irmãos não soavam da mesma forma? Já que o trem da última viagem lhe dava sinais, que fosse em grande estilo. Tinoco, 91 anos, entrou como criança no Teatro Franco Zampari, em São Paulo, na quarta-feira, para gravar um especial do programa Viola Minha Viola, da TV Cultura, dedicado a ele por Inezita Barroso. Ali, parecia indestrutível. Sorria de tudo e fazia piadas com uma agilidade de pensamento que ia juntando os risos da plateia uns aos outros, tirada após tirada. As duplas chegavam para cantar suas músicas e ele, de seu canto, acompanhava todas de cor. Inezita percebeu que sua mão tremia e achou melhor pedir à produção que não o deixassem segurar o microfone. Às vezes o peito cansava, e ele seguia em frente. Se fosse contar a real de seus últimos tempos, seria um rio de lágrimas. Há três anos, decidiu rifar seu Gol 98 para pagar o tratamento que sua mulher Nadir fazia para se livrar de um câncer. A tarde era de festa, e foi como um mestre de cerimônias que Tinoco resolveu se despedir. "Gente, meu aniversário é hoje. Vamos cantar parabéns pra mim?" Aniversário coisa nenhuma. A data certa de seu nascimento é 19 de novembro de 1920, mas, vai querer entender, Tinoco decidiu pregar a peça. E todo mundo caiu. As duplas entravam no estúdio e Tinoco inflava de orgulho. Duo Glacial, Divino e Donizeti, Ivan Lobo e Vitor Cesar, Mazinho Quevedo, todos cantando peças de um monumento erguido pelos dois irmãos fundadores de um caipirismo fantástico cantado a duas vozes, uma cultura de viola e de comportamento, de causos em verso e prosa. Ali, sentado ao lado de Inezita, poderia ver um filme sendo rodado em película enquanto todos cantavam juntos, e com lágrimas da plateia, Moreninha Linda.
Em mais de 60 anos de carreira, Tonico e Tinoco venderam 150 milhões de discos, gravaram 83 álbuns, mais de mil músicas e subiram ao palco juntos por 40 mil vezes. Se ganhasse um mísero real por cada disco vendido, seus últimos dias teriam sido bem diferentes. Mas ali, nada de esbravejar contra o Ecad. Tinoco queria festa. Olhou para Inezita e pediu que cantassem juntos. E Inezita mandou a Vingança do Chico Mineiro, autêntica representante do gênero que também criaram chamado moda de resposta, o troco à história do amigo Chico Mineiro, baleado na tal festa lá do sertão de Goiás. Aqui pelo sertão de São Paulo, era tudo cururu antes de Tonico e Tinoco. ‘Sertão de São Paulo’ já é uma heresia de dar agulhada no peito de caboclo paulista. "E quem disse que São Paulo tem sertão? Sertão é no nordeste", diz Inezita, dizia Tinoco. Os irmãos preferiam Caipira, assim mesmo, escrito em maiúscula e dito sem abaixar a voz. O cururu que encontraram aqui era o ritmo dos violeiros do interior, uma música de desafio entoada por um cantador e um violeiro. Com aquelas vozes que mais pareciam uma, não teve jeito. Firmou-se a moda de viola. A partir dali, ganhava força o formato ‘dupla caipira’ de primeira e segunda voz. E aí, a porteira se abriu. Como fez Luiz Gonzaga com seu sertão, Tonico e Tinoco passavam a representar um outro homem do campo que só ganhou força quando as gravadoras viram que eles eram muitos. E que de cada tijolo que faziam parecia sair um prédio. Chico Mineiro, Tristeza do Jeca, Beijinho Doce, Paraguaia, Luar do Sertão, A Moda da Mula Preta, Chico Mulato, Estrada da Vida, João Carreiro. Chitãozinho e Xororó, antes de ser dupla, era música que cantavam em circo do interior. Um programa só era pouco. Depois das modas, tinham os causos. Ou melhor, para cada uma delas havia uns três deles. A vida de Tonico e Tinoco já começa em forma de moda. Pois lá estavam eles para registrar seu primeiro disco, estúdios da Gravadora Continental, ano de 1944. Hora de cantar o cateretê Invés de me Agradecê. O lado A do disquinho de 78 rotações de duas músicas da época saiu que foi uma beleza. Quando foi a vez de soltar a voz para gravarem o lado B, emocionados com o feito do A, soltaram a bicha demais. Já poderosa por ser ‘duas em uma’, saiu tão alta que danificou o microfone. Gravar um disco na época era coisa cara, eles não teriam outra chance. Invés de Me Agradecê saiu então com um lado só, e os irmãos perceberam que era hora de educar a emoção. Foram ter aulas com um professor.
A saga de Chico Mineiro foi consagradora, mas quase não aconteceu. Depois de lançarem cinco discos, Tonico e Tinoco ouviam o público reclamar, tinha gente que não entendia bem o que eles diziam. Ou as frases não eram bem pronunciadas ou havia caipirês demais ali. A gravadora decidiu que aquele seria o último disco. Quando o torpedo saiu, ninguém acreditou. Chico Mineiro deu nome nacional aos irmãos e rendeu dinheiro suficiente para que os dois comprassem suas primeiras casas próprias. E ainda havia gente dizendo que música caipira era coisa de gente sem cultura. Que bom, sobrava mais. Algo falava a Inezita Barroso que era hora de colocar aquele homem de volta à cena, nem que fosse pela última vez, por algumas horas. Um dos seus mais notáveis programas, já na galeria de melhores pelo valor histórico, será apresentado amanhã, às 9h. Um show seu estava previsto para a Virada Cultural, às 13h de amanhã. Assim que terminaram as gravações, Inezita desceu de elevador ao lado do parceiro. Sentiu seu peito cansado, ainda trêmulo, mas sem perder o sorriso. No dia seguinte, quinta-feira, passou mal e foi hospitalizado. Na madrugada, à 1h40 de quinta para sexta, seu pulmão e seu coração pararam no Hospital Municipal Doutor Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca, zona leste de São Paulo. Os médicos disseram que Tinoco havia sofrido um silencioso enfarte dois dias antes, mas não percebeu. Dois dias antes era exatamente quando ele estava em um de seus melhores momentos, revendo a trajetória que fez ao lado do irmão, em um programa de televisão com gente que cantava suas músicas e ria de tudo o que ele dizia. Era como se a tinhosa lhe desse um dia a mais para tirá-lo de cena. Sua felicidade ali era invencível.
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