O nordeste brasileiro tem uma coisa de diferente na sua cultura, uma marca registrada, que é a dos cantadores, poetas populares e dos declamadores. Junta com a tradição dos poetas repentistas, dos cordelistas no mais puro da tradição e transmissão oral.
Patativa do Assaré, o maior dos poetas, durante muitos anos seus poemas nunca foram registrados em forma escrita ou gravada. Guardava "tudo na cabeça" e recitava de cor seus poemas, extensos, com muitas e muitas palavras. Imagino o "nó na cabeça", ou uma tremenda dor de cabeça, se um desses cantores de pagode e sertanojo resolvesse decorar um desses poemas e tentar cantar junto com a multidão que os acompanha aos berros e acostumados às letras de quatro ou cinco palavras básicas. Tive o enorme privilégio, uma das maiores e mais agradáveis lembranças das minhas caminhadas pelas estradas, que foi conhecer Patativa lá na sua terra, a cidade de Assaré, nas bandas do Cariri Cearense. Uma manhã inteira em sua casa ouvindo suas declamações. Não tem tchu e e não tem tcha que pague essa emoção.
Um dos grandes, considerado por muitos o maior dos poetas que ainda estão vivos, é Chico Pedrosa com suas palavras maravilhosas mostrando a vida das pessoas, sua alegria de viver, suas agruras, muitas causadas pelos nossos governantes, sua inteligência e perspicácia. Com livros publicados tem também muiitas letras musicadas pelos grandes cantadores. O extinto Cordel do Fogo Encantado apresentava sempre os seus poemas, declamados pelo Lirinha. O Bar do Fango recebeu este ano Paulinho Jequié, Walter Lages e Paulinho Matricó, tres cantadores nordestinos do maior respeito, e todos cantaram e declamaram Chico Pedrosa.
Quando vem a São Paulo Chico Pedrosa não esquece de visitar seu amigo Ribinha, que faz o melhor baião de dois de São Paulo, do Aconchego do Assaré, quando os sortudos comensais ali presentes podem ouvir suas recitações.
Na sequência um vídeo de um dos seus poemas mais populares, uma deliciosa mistura do sagrado com o profano, com imagem e voz do autor, que tem o nome de Briga na procissão e também conhecido por Jesus na prisão.
A BRIGA NA PROCISSÃO também conhecido por JESUS NA PRISÃO
Chico Pedrosa
Quando Palmeira das Antas
pertencia ao Capitão
Justino Bento da Cruz
nunca faltou diversão:
vaquejada, cantoria,
procissão e romaria
sexta-feira da paixão.
Na quinta-feira maior,
Dona Maria das Dores
no salão paroquial
reunia os moradores
e depois de uma preleção
ao lado do Capitão
escalava a seleção
de atrizes e atores
O papel de cada um
o Capitão escolhia
a roupa e a maquilagem
eram com Dona Maria
e o resto era discutido,
aprovado e resolvido
na sala da sacristia.
Todo ano era um Jesus,
um Caifaz e um Pilatos
só não mudavam a cruz,
o verdugo e os maus-tratos,
o Cristo daquele ano
foi o Quincas Beija-Flor,
Caifaz foi o Cipriano,
e Pilatos foi Nicanor.
Duas cordas paralelas
separavam a multidão
pra que pudesse entre elas
caminhar a procissão.
Cristo carregando a cruz
foi não foi advertia
o centurião perverso
que com força lhe batia
era pra bater maneiro
mas ele não entendia
devido um grande pifão
que bebeu naquele dia
do vinho que o capelão
guardava na sacristia.
Cristo dizia: "Ôh, rapaz,
vê se bate devagar
já tô todo encalombado,
assim não vou agüentar
tá com a gota pra doer,
ou tu pára de bater
ou a gente vai brigar.
Eu jogo já esta cruz fora
tô ficando revoltado
vou morrer antes da hora
de ficar crucificado".
O pior é que o malvado
fingia que não ouvia
além de bater com força
ainda se divertia,
espiava pra Jesus
fazia pouco e dizia:
"Que Cristo frouxo é você,
que chora na procissão
Jesus pelo que se sabe
não era mole assim não.
Eu tô batendo com pena,
tu vai ver o que é bom
é na subida da ladeira
da venda de Fenelon
que o couro vai ser dobrado
até chegar no mercado
a cuíca muda o tom".
Naquele momento ouviu-se
um grito na multidão
era Quincas que com raiva
sacudiu a cruz no chão
e partiu feito um maluco
pra cima de Bastião.
Se travaram no tabefe,
ponta-pé e cabeçada
Madalena levou queda,
Pilatos levou pancada
deram um bofete em Caifaz
que até hoje não faz
nem sente gosto de nada.
Desmancharam a procissão,
o cacete foi pesado
São Tomé levou um tranco
que caiu desacordado,
acertaram um cocorote
na careca de Timóti
que até hoje é aluado.
Até mesmo São José,
que não é de confusão
na ânsia de defender
o filho de criação
aproveitou a garapa
pra dar um monte de tapa
na cara do bom ladrão.
A briga só terminou
quando o Doutor Delegado,
interviu e separou
cada Santo pra seu lado.
Desde que o mundo se fez,
foi essa a primeira vez
que Cristo foi pro xadrez,
mas não foi crucificado.