“Quando um muro separa, uma ponte une...”
(Paulo César
Pinheiro\ PESADELO)
Quando o primeiro tronco caiu
sobre um pequeno riacho e suas extremidades ocuparam as margens opostas, estava
inaugurada uma nova maneira de se ultrapassar obstáculos em busca de alimento e
de abrigo. Esse jeito natural de interligar, no mesmo nível, pontos separados
por rios, vales ou outros impedimentos foi prontamente imitado pelo homem que, na
época dos etruscos, nomeou a engenhoca de “pont” (estrada). Desde as primeiras,
de troncos de árvores ou pranchas de pedra, a evolução de suas construções
levou a humanidade a conceber estruturas duradouras diversificadas: em arcos,
em ferro fundido, com treliças ou cabos, em aço, ou suspensas em extensos vãos
(sob água ou meio seco) e à criação, na França, da primeira escola superior de
engenharia civil, a École des Ponts et Chaussées, do século XVIII.
Existem as mais famosas (Ponte 25
de Abril, ponte suspensa que liga Lisboa à margem sul do rio Tejo; Ironbridge,
primeira ponte inglesa de ferro fundido; Ponte de Londres, sobre o rio Tâmisa;
Golden Gate Bridge, ponte americana, sobre a Baía de S. Francisco; Ponte do
Brooklyn, sobre o rio Hudson; Ponte Hercílio Luz, em Santa Catarina, a maior
ponte pênsil do Brasil; Ponte Rio-Niterói, com 13,9 km de extensão, e Ponte JK,
cartão-postal do principal centro político-administrativo do nosso país.) e as
nem tão famosas, mas brilhantes em sua tarefa de conectar lugares e pessoas,
como a nossa Ponte de Delta.
Paradoxalmente, essa ponte que,
desde 1915, une paulistas e mineiros foi campo de batalha para separá-los, na
época da chamada Revolução de 1930. O movimento armado liderado por Minas, Paraíba
e Rio Grande do Sul, culminou no golpe de Estado que depôs o presidente da
república Washington Luís, impediu a posse do eleito Júlio Prestes e pôs fim à
República Velha. Há muitos relatos históricos sobre a árdua batalha,
principalmente por conta da estrada de ferro, e quem pôde, como eu, conviver
com um avô, morador do outro lado da ponte na época, ouviu causos e histórias
de corpos de combatentes descendo o rio.
A estrutura de ferro foi construída para atender à malha ferroviária
da Cia Mogiana que – nascida em berço paulista – cresceu cortando o Triângulo
Mineiro e aportou em Uberaba, por volta de 1889. Alguns dizem que as peças vieram da
Inglaterra, outras afirmam que a ponte tem nacionalidade alemã. O certo é que a
partir da década de 1910, a travessia do rio deixou de ser feito com barco ou
canoa para as gentes do lado mineiro (Delta, Sacramento, Conquista: pacatas
cidadezinhas que vão devagar, como diria Drummond) e da banda paulista
(Aramina, Igarapava) e outras, vindas de estados mais distantes. Quando inaugurada, as pessoas vinham de todas
as localidades para contemplar a beleza, porém, hoje, o que resta de uma das
principais rotas de travessia dos dois estados, é um conjunto de sustentações,
de 324 metros de ferro importado, que guarda marcas históricas importantes, mas
que se encontra desgastado, sucateado, cheio de rachaduras, com as grades de
proteção distorcidas, sinais de infiltração e desprovido de qualquer sinal da
possibilidade de investimentos em sua restauração.
Lenine canta: “A ponte é até onde vai o meu
pensamento\ A ponte não é para ir nem pra voltar\ A ponte é somente pra
atravessar\ Caminhar sobre as águas desse momento...” e penso que as águas do
momento de alguns, quando muito turvas ou turbulentas não oferecem outros
caminhos senão os da entrega dolorida. Se muitos se atiraram e ainda o fazem, da
famosa Golden Gate, ou de outra, sob um céu azul de nuvens fiapentas, não há
relato de que isso tenha ocorrido na de Delta, encoberta pelo mesmo céu, mas
foi sob ela que muitos mergulharam, na profundeza das águas, um futuro inteiro,
ao se transformarem – pela bala do inimigo – em corpos correnteza abaixo.
O que, provavelmente, não se passa pelas nossas
cabeças, na vã correria diária, é pensar em como pontes foram e são construídas,
em quantos morreram e morrem durante o processo, deixando, nas armações e
concretagens, sonhos de um dia atravessá-las e contar que ali tinha seu braço e
no quanto, por mais modernos que estejam as práticas de engenharia e os
equipamentos de proteção, haverá sempre momentos de suspensão e, sob os pés, só
a forte correnteza da monumental e gorda serpente líquida que, na pressa de
atingir o mar, engole vigas, cabos, roldanas e almas.