As lembranças mais longínquas que tenho da infância remetem ao crepitar do fogo e a roda dos velhos. As enrugadas feições, já dissolvidas pelo tempo, sombreadas por chapéus de palha e a fumaça dos cigarrinhos de palha pairando no ar imóvel das calorentas noites da roça. E por entre uma rodada de caninha ou canecas de café seguidas pela travessa de bolinhos de trigo fumegantes, a alegre e infindável disputa entre sobre quem contava o melhor “causo”. Lembro-me da voz grave e pausada de meu pai, sempre a reinventar e adaptar histórias, ao sabor da audiência. Diga-se: contar “causo” era coisa de gente grande, criança só podia escutar, educadamente.
Se é que tive uma primeira experiência literária, sem dúvida foram os “causos”. Deixava de lado os folguedos com a gente de minha idade – por entre os 4 e 12 anos – para estar junto dos velhos a ouvir. Se naqueles tempos alguém me perguntasse o que eu queria ser quando crescesse, sem dúvida eu diria: contar histórias, mas contar do jeito que eles contavam, forjando atmosferas, imitando os personagens fossem bichos ou gente. Eram as histórias e os enredos a interessar, mas principalmente, mundos em miniatura, desconhecidos, que a imaginação nos levava em imprevisíveis e encantadoras viagens. A maioria daqueles velhos não sabia ler ou escrever, pouquíssimos possuíam rádio de pilha em casa, nãoassistiam televisão, jamais havia lido uma fábula, tudo sabiam de “ouvido”; ouvir e contar histórias era atividade muito séria, pois a partir das mesmas, expressavam suas opiniões e visões de mundo. Sei que é redundante, mas não custa repetir: os “causos” e as fábulas populares sempre encerram lições de fundo moral (a famosa “moral da história).
Nos tempos atuais, não obstante a velocidade das imagens, das câmeras digitais, a internet, blogs, televisão,etc., as fábulas continuam muito presentes e já tive a oportunidade de ler várias delas, contendo lições, se não de caráter moral, repletas de humor e o riso sempre será um importante recurso para atravessar incólume algumas das agruras da vida.
Já contei aqui no ser-tão paulistano algumas histórias inspiradas nas lembranças de outrora: histórias de raposas, de onça, de papagaio. Um conto inspirado diretamente no estilo do mestre Rolando Boldrin, O Estado de Direito Caipira, me fez tentar a arte de recontar um causo. Muitas organizações, associações culturais, etc., promovem durante o ano cursos de “contação de histórias”, especialmente voltadas às crianças, mas alguns se voltam para visitas a hospitais ou casas de repouso. Iniciativa louvável, importante do ponto de vista humano e também na continuação de um costume que remonta aos primórdios da cultura humana – quem pode imaginar o desenrolar da história das Mil e uma Noites? As histórias não nascem do nada, são remodeladas, adaptadas conforme o tempo e o lugar. Muitas das tradicionais histórias do folclore brasileiro remontam à Peninsula Ibérica, como as histórias da Princesa Megalona, Donzela Tiadora ou Pedro Malazartes, conforme nos mostra Câmara Cascudo, no seu belo “Vaqueiros e Cantadores. Já o personagem Perêrê, do índio missioneiro que era, ao ser contado pelas velhas amas de leite aos sinhôzinhos, virou preto e ao seu nome foi acrescido o Saci, tornando-se Saci Perêrê, um verdadeiro pré Macunaíma! Em suas andanças pelo norte, nordeste e talvez sudeste, perdeu uma perna lutando capoeira e ganhou um gorro vermelho, provavelmente uma influencia europeia. O cachimbo deve ser outro elemento africano e também indígena. Enfim, a uma boa história, ninguém resiste, seja no ser-tão paulistano, numa mesa de bar, na Serra do Marão em Portugal, nas solidões do Alentejo, na pampa sob o chiado gelado do minuano, nos chapadões, no que ainda resta de cerrado, nas florestas. E quem tiver a oportunidade de ouvir o mestre Giba da Viola, pare e ouça!
Segue abaixo, uma dessas histórias circulantes que me chegou por email – não se trata de repetição literal, pois não me lembro das palavras exatas. Mas, como uma história puxa outra, incorporei elementos que me surgiram ao acaso, alguns personagens que andavam meio esquecidos de outras histórias, imploraram que os fizesse participar e achei por bem dar-lhes uma canja:
“O Criador, depois de criar os bichos, ouviu um zumzum de que a maioria deles estava insatisfeita com a forma e o conteúdo. Fofocas, quizílias, bate-bocas, ameaças de irem às vias de fato. O Criador esperou algum tempo para ver se as coisas se ajeitavam por si, mas nada! À cada dia, mais confusão e o envio do Papagaio para servir mediador de conflitos, resultou em total desastre, pois, falastrão como era, irritava a todos e ainda se sentiam ofendidos, pois ele tinha a mania de repetir tudo o que ouvia. Sob vaias, de mediador, assumiu outra função: ser interprete do Homem chamado Adão, que acabara de ser criado, não tinha companheira (ainda!) e não sabia a linguagem de nenhum bicho! “Af!”, fez o Papagaio, “cada uma! Como posso interpretar se não entendo o que ele diz?” Mas, esperto como, utilizou a técnica de repetir os vocábulos dando a todos a ideia de que era expert da língua humana! Até hoje, tem gente que pensa que Papagaio fala! Cada uma!
“O Criador Supremo, como se sabe, não se notabilizou-se apenas pela capacidade de fazer milagres dificílimos: sua especial qualidade, dizem, é a lábia perfeita, o domínio pleno do Verbo. Meditou um instante e viu que a maneira melhor para fazer valer a paz e a harmonia seria o convencimento, fazer cada um acreditar que era “especial” para Ele, o Criador. Anunciou que em três dias estaria na Clareira Central disposto a atender as reivindicações dos queixosos.
“No dia marcado, lá estava Ele, o Criador, bondosamente despachando junto as suas criaturinhas, que tanto amava. O primeiro a entrar foi o Elefante, num queixume choroso:
“Senhor! O que fizeste comigo? Tornaste-me motivo de escárnio e de riso! Todos mangam de mim! Ora é falar da tromba, ora da bunda enorme, ora da cabeça, das orelhas, que dizem ser abas! O pior ofensa é a denominação paquiderme! Isso não se faz!
“O Criador, admirando Sua própria astúcia, foi incisivo:
“Filho meu, em compensação, és invencível! Nenhum bicho ousa fazer frente a tu. Nem o leão, chamado o Rei, se mete contigo! Tua forte presença impõe respeito e as
calúnias que te lançam, é pura inveja.
“Embevecido, o Elefante dobrou os joelhos: Obrigado Senhor! E o Criador mandou vir o próximo.
Entrou um Cão, da raça boxer. Sentou-se educado, mas sua voz era um lamento:
“Senhor Criador! Sinto que serei um revoltado pelo resto da vida. Elogiam-me pela fidelidade, mas dizem que o espelho é meu inimigo! Não entendia, até ver minha imagem! Senhor, eu sou tremendamente feio! Sou mais feio que o buldogue e caluniam-me, dizendo que imponho respeito pela feiura! Outro dia um cretino engraçadinho teve a pachorra de me apontar na rua e dizer: olha o cão chupando manga!, e abriu-se numa gargalhada infame, e por pouco não deixei fluir a fera que habita em mim, e...
“Sagaz, como deve ser, o Criador se interpôs:
“Ó filho! Mas és o mais bondoso dos cães! As mais formosas damas sonham em tê-lo como animal de estimação, pois és pura ternura!
O tímido boxer,olhou meio desconfiado, mas a lembrança de que uma graciosa moça o acariciou e falou “lindinho”, o encheu de esperanças. Saiu agradecido.
Em seguida veio a Girafa. Perante o Criador, esperneou:
“Sou motivos dos piores gracejos. Humilham-me. Minha vida é insuportável, não tenho prazeres”
“O Criador, sorriu benévolo, já tinha na ponta da língua:
“Filha minha! Mas comes as folhas mais tenras e preciosas! O que dizem de ti, é pura inveja! E a Girafa, ergueu ainda mais o queixo, arrebitou o traseiro e saiu imponente pelas savanas.
“Pensando ter terminado a leva dos queixosos, o Criador já se preparava para saiu quando entrou uma Galinha, ciscando nervosamente para todos os lados:
“Olha, eu não quero nem saber! Não me venha com novehoras, com enrolação! Nada desse papo de harmonia, porque comigo não cola! Ou diminui o tamanho do ovo ou chuto o pau da barraca e ponho pra quebrar!!!”
...e como diria Tia Angélica, que em Pilar de Goiás me contou uma bela história de princesa: "...entrou pelo pé de pato, saiu pelo pé de pinto! O rei mandou dizer que conte mais cinco!"
A GALINHA E O OVO ou UM “CAUSO” DOS TEMPOS MODERNOS
O Sertão e a Cidade
Publicado em:
Causos e Coisas do Interior,
Cultura Popular,
Folclore,
História e Raízes Culturais,
Lendas,
O Sertão e a Cidade