Tarde dessas estava eu curtindo um justo cochilo – lá no Pontal se dizia “madorna” – quando sobressaltado fui por uma voz que poderia ser de uma donzela em perigo ou de uma criança, igualmente em perigo, o que me fez saltar da rede e empunhar garrucha e peixeira. Assuntei um momento e o apelo persistiu:
- Seu. Joca! Seu Joca! – a voz aguda, trêmula de pavor retiniu e avancei rumo a porta, pois, fosse quem fosse – uma donzela ou uma criança – não poderia esperar. Saltei porta afora e me deparei com a filhinha de meu vizinho, garotinha de uns cinco anos apontando para o pé de acerola plantado bem a entrada de minha casa. Ao me ver, gritou:
- Seu Joca! Um bicho! – olhei para os lados, para cima, para trás e para baixo e nada vi! Teria o “bicho” fugido à minha aproximação, sabendo agora que enfrentaria não uma garotinha de cinco anos, mas um Prinspe Cangaceiro armado até os dentes? Mas a garotinha continuava apontando num ponto qualquer e deduzi que o tal bicho permanecia, negaceando talvez, e deveria ser dos mais habilidosos, camuflando-se.
Convinha me preparar. Olhei para o lugar em minha vivenda onde estaria o meu cavalo, o famoso e indestrutível Murzelo Alazão, fiel companheiro de muitos combates e vitórias e eis que o Alazão não estava onde deveria estar! Teria fugido, meu valente cavalo? Eita que a coisa era mesmo séria, pois se até o Murzelo dera no pé! Indignado com sua traição, ia dizer umas poucas e boas deste alazão de araque, mas decidi poupar forças para digladiar com o terrível, invisível e provavelmente invencível oponente!
Pois que eu enfrentaria o monstro inimigo que fosse e a pé e me entenderia com o Alazão depois – era provável que o danado estivesse a se vingar de mim, pois nos últimos tempos, andei a trocar sua montaria pelo dorso de uma motoca e o raio do cavalo deveria estar com ciúmes, era o que faltava!
Armas prontas, garrucha um-tiro-e-uma-carreira e peixeira, indaguei à criança onde estava o tal “bicho” e tremendo a coitadinha apontou o tronco da aceroleira! Pé-ante-pé me acheguei e eis que numa reentrância do tronco, vi, lá estava!, mas não acreditei: mas, é esse o bicho?
- Sim, seu Joca, uma aranha! – confirmou a garotinha – Mata, pois ela quer me morder.
Ah, mas se pensa que me engana, o dito cujo! Pensei comigo que esta cidade e que mundo é esse que está mesmo cada vez mais insano, a maldade não encontra limites e os malfeitores fazem uso de todo tipo de subterfúgio para conseguir seus malfadados intentos! Que mente demoníaca era essa que fazia o infame endríago disfarçar-se de uma inocente aranha de jardim – dessas que dizem que dá azar matar – para assustar uma pobre e inocente criança! Ah, mas esse bicho não sabe o que o espera! Conheço suas artimanhas e se pensas cometer suas vilezas à porta de minha casa, engana-te!
Peixeira em punho, cheguei a distância segura. Olhei a Aranha e a Aranha me olhou, medimo-nos força. Lancei o desafio:
- Destransforme-se, vilão safado! Quero te enfrentar é com sua cara verdadeira, não no disfarce de um insetozinho. Vou te mostrar que nos meus domínios, tu não faz das suas, não! Vamos, destransvira-te!
Mas a Aranha continuava simplesmente a me encarar, como se eu ali não estivesse ou será que o demônio estava era aguardando um relaxamento em minha guarda para atacar. Sem tirar os olhos da Aranha, tranquilizei a menina:
- Pode ir, princesinha, que vou dar cabo desse covarde disfarçado de Aranha e nunca mais há de te assustar e incomodar. – A menina saiu e sem tirar os olhos da bicha, relancei o desafio:
- Assuma tua cara! Acabo com tua raça, torpe bandido, palavra de Joca Ramiro!
Bem, ao falar meu nome completo – nem foi preciso anunciar os títulos nobiliárquicos e as batalhas que os valeram, nem a linhagem cangaceirística, pois parece que a Aranha resolveu arrefecer sua sanha devoradora e num rápido movimento, se escafedeu por entre a ramagem. Ergui o punho, triunfante, mas decepcionado, pois queria mesmo era derrotá-la em combate!
- E nunca mais apareça, covarde!
Entrei em casa e meio minuto depois, eis que alguém bate célere à minha porta.- Joca! Joca!, mas desta vez era voz de homem, meio irritada. (Será que o monstrengo resolvera dar as caras e enfrentar cara a cara em campo de justas?)
Mas ao abrir a porta, era o meu senhorio. Ainda meio cismado – ninguém sabe de que artimanhas cobardes são capazes os malfeitores – indaguei o que se passava – quase perguntei se havia visto um monstrengo por ali – mas resolvi esperar que falasse. Então, o homem apontou para umas ervas daninhas que crescem no meu quintal e vociferou:
- Pô, Joca! Vê se corta esse mato, pois daqui a pouco vai é aparecer onça aqui! - e saiu mundo afora, bamboleando desajeitado o corpo, a seu feitio.
Quanta ironia! Um terrível endríago ronda a vizinhança e o homem preocupado com onças, com as extintas onças das matas paulistas! Se ele tivesse esperado, eu teria dito que “onça por essas bandas, só se for mulher feia!
Segundo o guru ZéMaria, em Paraguassu Paulista, é assim que se denomina por lá as mulheres que não foram dotadas de beleza. Não posso confirmar a veracidade, pois aqui no ser-tão paulistano não existem mulheres feias, assim como não existem onças – pobres onças, hoje em dia os temíveis felinos fazem parte do anedotário!
Em Sampa, todas as mulheres são belas e se hai diferença entre elas, é que uma é sempre mais bela que a outra!