Nem carros, nem motocicletas. Nem ônibus ou taxi, nem trem. Carroça? Antiquado. Bicicleta?, vá lá! Mas o melhor meio de transporte até hoje inventado é mesmo o cavalo: nobre, elegante, bem arreado faz inveja os melhores designers; para estacionar basta um pequeno poste ou mourão, ocupa pouquíssimo espaço. E o cavalo faz parte da identidade da maioria dos povos e no Brasil não poderia deixar de ser: as primeiras estradas abertas no antigo Brasil foram caminhos de tropas, por onde se transportava toda a riqueza nacional. Conta a história que o imperador D. Pedro preferia montarias à carruagens e deve ter algo de verdade nisso, pois ao se impacientar com a metrópole e decretar “Independência ou Morte”, era no lombo de um equino que chegava a São Paulo, ali no Ypiranga, pertinho da casa do Zé Maria. (Chego a desconfiar se o Zé não teve alguma coisa a ver com essa tal de Independência... Oficialmente foi outro Zé, o Bonifácio, mas...)
Eu sou feliz proprietário de um cavalo, o insuperável Murzelo Alazão, parceiro de muitas aventuras no ser-tão paulistano. Já tive alguns problemas com a Vigilância Sanitária, que cismou de implicar com as fezes do Murzelo, que segundo aqueles técnicos, “....são uma ameaça á saúde da população, sem contar o cheiro...” Que gente mais sem imaginação! As fezes são o melhor adubo que pode existir e na onda atual de reciclagem, é alternativa econômica segura! (Mais que depressa tratei de patentear as fezes de meu cavalo, antes que algum imperialista oportunista se adiante.)
Meu cavalo estava de férias, forçadas diga-se. Eu pretendia fazer uso de outro tipo de montaria, uma motoca, uma vez que minha intenção era ser o primeiro chefe de cangaceiros motorizado da história. Não queria fazer o Murzelo sofrer, mas ele descobriu, não sei como, e fez uma cena terrível: pôs-se a chorar como um bezerro desmamado – ironia besta, que o Murzelo não achou graça nenhuma! Cena tocante e constrangedora: vocês não podem imaginar o quanto é triste, o quanto é miseravelmente triste, um cavalo a chorar*!
Bem, não me saí bem com meu novo meio de transporte e acabei com os burros n’água – a ironia besta se voltou contra mim e o Murzelo Alazão ria-se a rolar pelo chão, cavalo cruel, sem coração! Tive de chamá-lo de volta, e o bicho fez-se difícil e arisco, um monte de exigências – até cerveja! – mas por fim, concordou em novamente ser meu parceiro pelas trilhas do ser-tão paulistano...
Apaziguados, enfim, chegamos na tarde deste domingo, 07 de abril, no simpatico, charmoso, suntuoso e chiquérrimo atellier literário onde reina soberba a Lenda, sim, “ela”, a nossa editora-chefa, escritora e doutoranda, Fernanda de Aragão Y Ramirez.
Cantoria e Prosearia era o acontecimento cultural por excelência, há muito aguardado e no qual estariam presentes figuras importantes do mundo das artes: e era gente talentosa, bonita e importante que chegava, o pobre chefe do cerimonial rouco de tanto anunciar: a musa da musga brasileira Katya Teixeira, André Venegas; os violeiros João Arruda, Ricardo Vignini, Julio Santin, Levi Ramiro; Dea Trancoso e João Bá, Marcos Azevedo. Entre saborosos petiscos e boas geladas, vinho e cachaça, uma tarde/noite de domingo a se desenhar inesquecível. João Arruda, de posse de uma viola-de-cabaça, obra do artesão Levi Ramiro, deu inicio à brincadeira: A viola-de-cabaça tem som cristalino, redondo, timbres que se desenham no ar. Como um imã, atraiu Ricardo Vignini com sua viola e a jam session teve inicio.
Aqueles toques vibrando na noite era muito mais que um show ou performance, era uma vivência, uma experiência musical tanto para os músicos e os felizardos que por lá aportaram: um tema se desenvolve, desemboca noutro. Levi Ramiro acabara de nos contar um delicioso causo que oportunamente haveremos de divulgar por aqui, se ligou no som e endoideceu: arribou para a roda onde já estava Katya Teixeira e violão, mais João Bá e por ali, espiando curioso, Julio Santin, meu conterrâneo lá de Irapurú. Os trinados desafiantes era coisa mesmo pra gente grande: pega-se pelo meio, retoma e/ou modifica arranjos, como nos melhores improvisos nos melhores tempos do melhor jazz. Instrumentos trocam de mão: João Arruda parece “possuído”, pois toca o que lhe cai a mão - tambor, charango, viola e ainda canta; antes que se pense n’algum outro tipo de possessão, Levi Ramiro, que foi coroinha na juventude, se empolga e proclama: “É Jesus operando!” De fato, embora se pudesse chamar de diabruras muito do que ocorria ali, aquilo era divino. Vendo aqueles rodopios inacreditáveis, guinadas sem perder o pé, lembrei do Zé Gomes e uma de suas frases preferidas: “Voce pode pular onde quiser! Mas tem de cair de pé do outro lado!” É ou não verdade, Nani Braun? Não me deixe mentir! E se estivesse por cá o novaiorquino Woody Mann – o gringo que faz parte da trupe do ser-tão – mais a viola mágica do Indio Cachoeira, o baixo do Jesus (da banda Matuto Moderno), um ou mais Barbatuques para juntar-se ao André Venegas e teríamos uma arrepiante sessão caipira jazz fusion!
Ricardo e a violinha ora freia ora avança compassos rítmicos ora desembesta floreios e se fecharmos os olhos, veremos um campo aberto repleto de vida; ou uma plácida rua interiorana; ou um rio preguiçoso seguindo para o litoral; ou um passeio tranquilo pela Av. São João, Augusta, Paulista ou Consolação: aquilo era o som de nossa terra, de nossa gente. E como vinda do alto, a voz e o violão de Kátya Teixeira, que nos embalam e levam alternadamente de sambas de roda, canções do Minho, aos ritmos latinos. A mediar, a voz grave e solene de João Bá, nosso menino aos 80 aninhos. Déa Trancoso forma dupla com João Arruda e logo todos os seguem.
Ah, mas eu queria ser poeta, mas poeta capaz de desenhar/transformar imagens em palavras. Só essa exactidão poderia dar uma pálida ideia do que seja ver toda essa gente "comendo e bebendo musica", em seu ambiente natural, no ambiente que consiste no cerne de suas vidas: junto de amigos queridos sem outra preocupação além de soltar a voz dedos e mãos. A personagem central? a Musa Musica a tudo permeando, suave, quente, vibratil, emotiva, alegre, vigorosa. Eis uns versinhos, colhidos e retidos na memória (são de João Bá? Se não for, tem a cara dele):
"Balança o remo
Pra canoa não virar
Balança o remo
Que o vento comanda a proa
Quem nunca andou de canoa
Não sabe o que é remar..."
E mais outro:
“Lua, lua de amor
Sol de verão
Queimando coração!”
Não posso dizer que terminou. A música ficaria para sempre retida nos corações e mentes e os momentos de calor humano e amizade, prometendo para breve, novos re-encontros. Nesses encontros festeiros, sempre haverá as presenças de Dércio Marques, do Zé Gomes, Gonzagão, Caymmi, Villa Lobos, Paulo Moura. Desenbarcando da caravela, o próprio Zeca Afonso...
E onde tem canto e viola, sempre paira sons de rabeca e quem sabe para o próximo, lá não estará, Thomas Roher? E com ele Fernando Deghi, Vidal França, Paulo Freire, Sabah Moraes, Ney Couteiro, Walter Lajes, Fernando Guimarães, Monica Alburquerque, Indio Cachoeira, Consuelo de Paula, Graziela Hessel, Claudio Lacerda e outros? O show da música brasileira, nunca termina. Olê!
*ref. Ao livro A Caverna, de Saramago