KATYA TEIXEIRA E CONSUELO DE PAULA: O BRASIL EM SINTONIA

Fim de semana pródigo: sábado, 20/04, dupla comemoração: no Bar do Frango –aquele que é para poucos e que não vai mais fechar – compartilhamos a presença pujante de Katya Teixeira. E graças à uma feliz conspiração dos astros, no domingo, 21/04 em Curitiba, apreciamos a arte de Consuelo de Paula e da Orquestra à Base de Corda.
Ambos espetáculos se encaixaram, se harmonizaram, pois se existe uma expressão que possa explicar o que senti, seria esta: "lavei a alma!"
Lugares completamente diferentes: O Bar do Frango, como diz o nome, é um antes de tudo um bar, um boteco na melhor acepção da palavra, com sua distribuição caótica de mesas e cadeiras de madeira, o Tatau e a Rute se virando em contorcionismos acrobáticos para atender da melhor maneira possivel os clientes amigos; no palco, junto ao público, o que não tem de espaço físico sobra de energia, artista e público juntos, em simbiose. No Teatro da Universidade Federal de do Paraná, espaço amplo e confortável, espetáculo primorosamente dirigido pelo maestro João Egashira, também diretor artístico da Orquestra.
De comum entre as duas grandes damas de nossa cultura popular, legítimas herdeiras de Inezita Barroso e Ely Camargo: alma e coração, entrega total ao ofício cantadeira; também comum, as propostas expostas nos distintos palcos, o tratamento da cultura musical brasileira com dignidade, fiel ao espírito da obra popular, que nada tem de arcaico ou petrificado. “Tradição é movimento”; toda obra forjada no seio do povo naturalmente se adapta aos novos tempos e situações - um exemplo típico é Laurindinha, uma “canção de amor e guerra” sobre os soldados que partiam para a guerra (provavelmente napoleônicas) perfeitamente vertida para o interior mineiro sob o nome de Senhora Rainha; não importa a citação do “marinheiro que vai para a guerra” quando se sabe que em Minas não tem mar, afinal, não é geografia física o que importa, mas sim a tragédia dos amores apartados.
Para ilustrar o que brevemente expus acima, vou descrever sumariamente dois momentos, um de cada espetáculo, que, espero, possam dar uma pálida ideia do que foi aquilo:
- Em São Paulo, no Bar do Frango, Katya Teixeira desliza os dedos pelo violão e alegremente mistura versos de autos de boi do Pindaré com canções da saudosa e genial Irene Portela. Irene Portela lançou um único disco, pela Marcus Pereira, o bastante para figurar entre os mais importantes da MPB de todos os tempos, o Rumo Norte – haveria melhor título para a então MPB do que um “rumo norte”? Apesar de profícua compositora e cantora com timbre especialíssimo, não gravou mais, por motivos que nem vale a pena investigar muito. Houve um lançamento especial em CD, produzido por sua filha, que uns poucos felizardos devem guardar como ouro (eu próprio era possuidor de um, mas um desalmado ladrão o levou. Tomara que ao menos tenha ouvido e quem sabe, refeito seus conceitos de vida). Ao que se sabe, Irene não gravou nenhum “tema de boi”, mas Katya Teixeira não se fez de rogada; com a alegria e vigor de sua voz cristalina, decretou: tudo a ver Irene Portela e o “boi” e só quem lá esteve pôde captar a lindeza que foi ouvir em sequencia “boizin do Pindaré/Folha Verde/Lua peixe”. É por isso que nunca vou me cansar de ir a todos shows possíveis de Katya, ela sempre surpreende...
- Em Curitiba, no Teatro da Reitoria, entre vários momentos sublimes da apresentação de seu último trabalho, o Cd “Casa”, definitivamente uma moradia acolhedora, um coração do tamanho do sertão:
minha casa te espera
Desde sempre te espera”
ou
amor de longe, amor de perto
Meu coração tem rumo certo”
,
que na sua voz delicadamente modulada tem sabor de prosa boa e sincera, ecoando no ambiente como se estivéssemos em sua sala. Ao final da última musica, no meio do plateia ergue-se o Coral da Reitoria entoando “Destino”, uma das mais belas faixas do disco; as vozes pareciam nascer de todos nós, se espalhar e voltar novamente para cada um de nós, dissolvendo-se em nossas almas: simples, emocionante, arrebatador. Poucas vezes se viu tamanha harmonia entre público e artistas, como se fôssemos um único ser, todos vibrando na exata sintonia na homenagem, in memorian, ao violonista Rubens Nogueira, parceiro das letras do Casa...
Enfim, Consuelo de Paula e Katya Teixeira, genuínas filhas da terra, herdeiras do conhecimento ancestral de nossa gente, que retransmitem mantendo a pureza e frescor originais, não obstante dialogarem com os novos tempos. Por essas e outras, são motivo para o Brasil orgulhar-se e mostrar a cara: e que cara bonita temos! Como diz o ZéMaria: não basta um rostinho bonito!
Katya Teixeira e Consuelo de Paula: quem conhece, não esquece! Simplicidade, naturalidade, alegria, sofisticação, sentimento: de suas andanças pelo mundo filtram e extraem a pura vivência, tornada musica, arte. Só ouvindo ou vendo para sentir: voz mineira, voz ibérica, voz paulistana, voz alagoana, voz do samba, da toada, da chula, do baião; voz do canto indígena, da congada, da Folia, da milonga: Voz Brasil, voz América! Quando veremos as duas, no mesmo palco? “EITA!”, diriam elas, em uníssono! “EITA!”, gritamos nós!
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