Da glória reluzente à lama ignóbil ou do céu ao inferno ou outra qualquer expressão que demarque claramente a disparidade entre intenção e ato, e assim poderíamos começar essa história que se pretendia gloriosa, mas que descambou para a tragédia irrecuperável. O que seria o acontecimento do ano, desvelou-se no fiasco do ano!
O Prinspe Zé Mangabeira, aquele que garante ser o herdeiro legítimo da verdadeira Familia Real Brasileira, anunciara há tempos, em pompa e circunstância, suas núpcias reais. O malogro, coisa que pode pegar um simples mortal desprevenido, era inteiramente impensável em se tratando de realezas, especialmente em tempos carentes de celebridades: porém, inexorável e implacável a lâmina afiada do destino nada poupou, não obstante o espanto que fez cálices se desprenderem de delicadas mãos a seguirem os indefectíveis “oh!”, que se seguem a tais gestos.
Entretanto, por mais improvável que fosse, aconteceu: mais vexatória a situação, impossível: diante do altar, horas e horas a consultar o relógio à espera da noiva; padre, autoridades, amigos, adversários, todos no aguardo e o raio da noiva que não chega. Zé Mangabeira firme, enfrentando em seu terno de veludo o insuportável calor e os risinhos irônicos, os pigarreios, a turba inimiga como aves de rapina saboreando o ataque. Passam-se as horas, os minutos, o temor cresce até que o mais temível e fatal dos temores se confirma: a noiva de Zé Mangabeira não comparecerá à cerimônia de casamento, pois fugiu com outro! Derreado, o Prinspe senta-se ao lado do altar e se põe a chorar... acreditem: nada há de mais triste neste mundo do que um Prinspe Herdeiro a chorar! O trajo amarfanhado, as plumas desbagaçadas e caídas, convidados a se retirarem pisando pétalas murchas, um desconsolo tocante. E para culminar, cruéis vilões a gargalharem sem pena o fiasco principesco.
Dentre seus detratores, prato cheio e feito: os que sempre ridicularizaram as pretensões Monárquicas do Prinspe, pegaram pesado: as zombarias ocorriam por toda parte, em rodas de desocupados, pelos bares da vida, programas humorísticos de televisão, todos, entre risos cruéis, só falavam no “enlace que tornou-se laço”, laço de ridicularias. Bem feito, vaticinavam: vítima de suas fantasias egocêntricas. Vez por outra, alguém piedoso amenizava as gozações, enaltecendo a capacidade de quem sonha o renascimento de uma Era de Ouro, anseio comum a indivíduos ou nações: desejo da volta do melhor de suas existências, situado num ponto qualquer do passado longínquo...”
Como se diz que desgraça pouca é bobagem, poucas horas depois, outra noticia explode: na cobertura onde mora, tumulto e confusão, caos! Zé Mangabeira ameaça matar-se. A comoção, a principio local, se amplia; comoção municipal, estadual, nacional. Amigos, bombeiros, súditos, curiosos, todos acorrem. Era preciso agir rápido e com determinação, pois a se confirmar o triste fim do último dos Mangabeiras, não seria apenas o fim trágico da estirpe fundadora do Império, mas era a própria Nação humilhada. Em rápida deliberação, se conclui pela nomeação de uma Comissão de alto nível e assim decidido, Joca Ramiro e seu cavalo, o garboso e inefável Murzelo Alazão são designados a comparecer ao local em desesperada tentativa de evitar a tragédia.
Uma rápida esquipada e lá estávamos á porta do prédio onde reside provisoriamente o futuro Rei do Brasil, assim que a Monarquia for restaurada. O inevitável: Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, Policia Militar, Brigadas de cavalariços, o diabo-a-quatro. De cara um impasse: um coronel denominado Lustroso, repleto de condecorações e medalhas, não queria que eu me aproximasse montado no Murzelo. Esbravejou:
- Tirem esse maluco daqui! Quem esse caipira pensa que é, montado nessa velharia em plena cidade?
- Estou em missão oficial! – retruquei - E agradeça aos céus por isso, do contrário não poderia garantir sua segurança por ofender o mais poderosos dos equinos! Sou Joca Ramiro! Tenho autoridade! E este aqui é o inigualável Murzelo Alazão, cavalo que vale um reino! - bufando, o Coronel Lustroso ia sacando o sabre, quando a voz do Prinspe Zé Mangabeira trovejou lá do alto:
- Só falo com Joca Ramiro! Ele é meu Ministro Extraordinário no futuro Reino!- voz e ditos de Prinspes são assim: distinguem a grandeza inata da fidalguia, exalam autoridade natural e nobreza, mesmo a dizer coisas banais. Mas esse Coronel Lustroso era mesmo enviesado a reconhecer a altivez da realeza principesca, era um bruto destituído de pundonor:
- E que porra é Ministro Extraordinário? - achei o cúmulo, falta de decoro, estive a ponto de dizer “você sabe com quem está falando?”, mas felizmente contive-me, o tipo não era para rebaixar-me.
- Ora, meu caro! O que não falta é ministério neste país! – aparteei diplomaticamente , porém em seguida impus – Com licença, tenho carta branca e não tenho tempo a perder! – ante sua breve indecisão, forcejei as rédeas e avancei! Pretendia adentrar até a cobertura numa cena espetacular, o Murzelo trincando os cascos naqueles pisos de mármore, mas o acanhamento das instalações do edifício, deteram-nos. Convenci o Murzelo a se acomodar no saguão e ficar à minha espera, rédeas presas num pilar romano.
Subi a dita Cobertura, num apertadíssimo e rangente elevador. Bem, cobertura é, porque fica no último andar, mas as acomodações do Prinspe eram precárias. Desconfiei que aquele fosse o alojamento do zelador do prédio – seria esse o disfarce do futuro Rei do Brasil? Fingindo-se humilde zelador de decrépito prédio no Centro Velho?
Passei por barreiras, por membros da elite das Forças Especiais á espreita. De fora ouvia a voz trovejante do Prinspe: “Não se aproximem! Ou salto!” Adentrando a moradia, dei com a impagável cena: nos fundos do cômodo, todo despenteado , o Prinspe Herdeiro da Familia Real Brasileira, ameaçava se atirar pela janela enquanto segurava uma corda! Notei, com espanto, que a corda que o Prinspe segurava tinha uma das pontas presa no enferrujado cano onde pendia um velho chuveiro... que diabos queria fazer o Prinspe? Ao ver-me, exclamou cerrando o punho:
- Joca Ramiro, meu Ministro Extraordinário! Eu sabia que tu haveria de seguir-me neste derradeiro gesto!
- Como assim, seguir-te?
- Saltando comigo! Serás glorificado, farás história, escreverás a história!
- Como escreverei a história se atirar-me contigo no derradeiro gesto? – A coisa estava mesma a se levar como grave! Zé Mangabeira não queria apenas matar-se, mas me levar junto! E como eu escreveria a História se me acabasse junto com a mesma? Cada uma! Mas, com vontades reais não se brinca e o causo estava longe de resolução - Meu amigo, o que o leva a tão extremo e tresloucado gesto?
- A honra, meu ministro extraordinário! Lamentavelmente é chegado um tempo em que honras principescas e reinóis são aviltadas e enxovalhadas! Incapaz de suportar as vicissitudes desses tempos bárbaros, só me resta despedir-me deste vale de lágrimas! Saio da vida para entrar na História, salvaguardando a Honra Real! Minha estirpe milenar não será difamada! O que é a dor física? Apenas uma distração! – Pasmo estava e continuei. Parodiar Getúlio Vargas era o cúmulo!
- Que mais desumano e contra as mais elementares leis da civilização ocidental do que um Prinspe ser abandonado no altar, exposto a zombaria das massas incultas? Agora, meu corpo não passa para mim de um empecilho, de um obstáculo e dele me desprendo antes do tempo tanto quanto possível. – que falastrão está a me sair esse Zé Mangabeir, agora cita Rousseau. O que não faz um rabo de saia na vida de um homem! Perde o tino, desgoversa-se! Mas, não coloquemos toda a culpa no pobre rabo de saia! ´ É o amor, a paixão a desnortear corpos e mentes, nem nobres Prinspes escapam de tais armadilhas!
- Ora, ora! Chamo-o a luz da verdade! Os amores, meu caro! Ah, por vezes belos tanto quanto volúveis, não há de faltar pretendente ao Real Trono do Brasil e...
- Ministro e Conselheiro! Contenha tuas ímpias e torpes opiniões! Como ousas tratar meus sentimentos com sórdida leviandade? E o que faltava! Minha Dama não era uma qualquer, mas a Musa Definitiva! Mil versos já haviam sido compostos a louvar sua glória! – dedo em riste Zé Mangabeira encarou-me com olhos terríveis, porém a seguir, bradou, como a clamar aos céus: - E a infiel a tudo desprezou, tratando de arranchar-se com um cabrinha sem eira nem beira, um joão-ninguém-qualquer, sem títulos nobiliarquicos, sem honrarias de qualquer monta... Ah, Ministro! Que tempos são esses? Trocar-me por um fuleiro...
- Impossivel!
- ..., sem servos! Nem um cavalo manco o chifrim possui! Sem prestígio nas belas letras, nas armas, um destituído!
- Bem, andei tomando informações e corre à boca pequena que se trata de um lendário Rei das Terras do Norte, um descendente de sábios! – falei com cuidado, não era hora de contrariar o Prinspe.
- Conversa fiada! Um bufão, um mandrião chinchorro! Um mequetrefe solerte, eis o que resulta o falsificador! Pensando bem, que se lasquem! Mas, como suportar isso? Mundo insano e cruel, devo mesmo dar-te adeus!
A coisa se apresentava grave, ecce facti ignis! Estava o Prinspe disposto a não arredar pé do intuito de por fim à ignomínia que se tornara sua vida. Creio ter encontrado uma solução desesperada e igualmente suicida – com perdão do jogo de palavras!
- Meu Prinspe! Bem sabes que sou seu fiel seguidor e conselheiro e como vossa intenção irremovível é dar cabo a vida, que assim seja, mas uma morte digna, para ser cantada em prosa e verso! Que seja a morte do século, que neste local se erija uma torre, um altar ao homem que com altivez suprema desprezou a própria glória, em nome do amor!
- Eu sabia! Eu sabia! És extraordinário, Ministro Extraordinário!
- Contudo, se reparares bem, o local não é adequado! Lá embaixo é uma via pública, o bairro é mal afamado... Já imaginou o escândalo de um Prinspe esbagaçado numa fétida ruela? Já podes imaginar a língua do povinho...
- Que diacho! Tens razão... Ah, mas eu não pretendia mesmo saltar e sim enforcar-me! – abaixou a voz: - Não contes a ninguém, mas tenho medo de altura!
- Tirar a vida por privação do abundante ar! Cena impressionante, trágica, tornar-te-às um mártir! Ato corajoso, semelhante ao haraquiri! Já vejo as manchetes na grande imprensa: Zé Mangabeira, o samurai tupiniquim! Contudo rogo-te que não faças isso da maneira como pretendes...
- Estou decidido, nada agora me impede! – e começou a lacear a corda no próprio pescoço e se aproximando do cano enferrujado do chuveiro.
- Não, não faças isso! – falei decidido - Apelo à sua consciência cívica, um Prinspe não haveria de ser causador de um vexame de tal monta e...
- Não é vexame, é o gesto final!
- Não, não é o gesto final que me refiro e sim à forma ridícula como Vossa Alteza pretende se enforcar! Não vês que este cano está enferrujado e que não aguenta o peso de vosso corpo? Será apenas uma frustrada tentativa de suicídio, serias motivo de chacota por toda a cidade, onde já se viu! O sacrifício de um Prinspe é coisa para constar nos anais da História como algo grandioso, espetacular, para ser gravado na mente dos povos, não como um gesto tresloucado de desespero! No máximo conseguirias provocar uma inundação! Poderias ser processado por dano ao patrimônio! E sem mais cano para apoiar a corda, como é que eu poderia acompanhar-te no prodigioso e sensacional “gesto final”?
- Então, está acabado! Que tempos são esses? Nem morrer com honras se é mais possível? É chegado o tempo dos músculos em vez de cérebros!
Sem opção, Zé Mangabeira desceu os muitos lances dos 15 andares do velho e decadente prédio. No exato instante em chegamos ao saguão, o Coronel Lustroso estava desatrelando o Murzelo do pilar romano. Contrariado, perguntei ao homem a razão de tal atrevimento:
- Ora, esse pangaré deve ter comido ração estragada, pois está soltando cada pum! – Eu ia avisar que jamais fizesse tal ofensa a um cavalo nobre como o Murzelo Alazão, mas foi tarde. Num relincho terrível, o mais poderoso dos cavalos ergueu as patas dianteiras e num rápido e inesperado rodopio girou as ancas e então fechei os olhos para não ver a desgraceira. Ouvi o barulho e o grito de horror! O arremate certeiro de alguns quilos de material coliforme fecal atingiu em cheio o coronel em seu uniforme coberto de condecorações e medalhas! A terrível defecada pastosa de cor esverdeada escorria do uniforme, culminou nas botas lustradas. Estupefato e patinando para não cair, aturdido a perder o rumo, o ilustrado homem, soltou as rédeas.
Um alarido se levantou da multidão: o povo andava louco da vida, o Coronel Lustroso tinha fama de bater em pobres coitados e agradar poderosos. Era chegada a hora da vingança, mesmo de modo insólito. Aplausos e hurras e olas e vivas ensurdecedores! O povo gargalhava e batia palmas e dançava um improvisado carnaval.
Zé Mangabeira, acreditando ser a ele que se destinavam os aplausos, acenava para a multidão, um sorriso alucinado cortava seu rosto, os olhos brilhavam! Num salto elegante e vistoso, alçou a sela do Murzelo, que, faceiro e de cauda empinada, ergueu a cabeçorra e sacudiu as ancas, trincando os cascos. Constrangido, o coronel não sabia se dava ordens peremptórias para prender o atrevido cavalo por desacato ou se livrava das fezes frescas que emporcalhavam seu uniforme de gala. Como a adivinhar-lhe os pensamentos, o Murzelo lançou-lhe um relincho jocoso, à guisa de imitar uma gargalhada e seguiu altaneiro por entre a multidão em festa...
MURZELO ALAZÃO, O CAVALO DO POVO
Passeios na Metrópole
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Causos e Coisas do Interior,
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