A ENCRUZILHADA OU A VOZ DAS RUAS

Gostaria de escrever hoje sobre os assuntos preferidos dos frequentadores deste blog, ou seja, música e cultura brasileira. E assunto é que não falta: a inauguração do Espaço Dércio Marques, contíguo ao Bar do Frango, onde já se apresentaram Dani Lasalvia, Edvaldo Santana, Tarumã, Katya Teixeira, João Bá, Galba, Victor Batista, Levi Ramiro, Wilson Dias, Graziela Hessel, Teca Amorim, entre outros e onde vão estar no próximo dia 20/07 Vidal França e Amauri Falabela, entre outros. Poderia igualmente falar do novo CD de Katya Teixeira e Luiz Salgado, o 2Mares ou do trabalho maravilhoso de Consuelo de Paula. Ou ainda do novo CD de Levi Ramiro, o magnífico Prosa na Base do Ponteio. Assunto, pois, há de sobra! Porém, nos últimos dias o chamado das massas na rua e sua repercussão, não cessam de ecoar em meus ouvidos e sinto não poder me livrar de uma palavrinha a respeito.  A Encruzilhada do título, pois, não se refere a lenda que gerou o filme de 1986, com bela trilha de Ry Cooder.
O Brasil foi sacudido por uma série de manifestações populares de diversos calibres e a imensa maioria dos analistas sérios que ouvi ou li (não foram muitos, devo reconhecer) estavam perplexos, não conseguindo fazer um diagnóstico preciso do ocorrido. Na minha simples opinião, acho que uma compreensão real levará algum tempo, pois uma análise razoavelmente precisa só virá à lume depois de baixada a poeira. Não faltam, naturalmente, os precipitados ou mal informados de sempre: ouvi muitos disparates, entre os tais que se tratou de tentativa de golpe da direita ou da “burguesia” ou ainda que admiradores e/ou seguidores do ministro Joaquim Barbosa pretendiam levar o país ao caos para que o Supremo – na figura do ministro/herói – o “salvasse” e assim estaria instaurada uma “nova ordem” em termos mais ou menos absolutistas. Como tal ocorreria, não ficou claro para quem me segredou a trama. Bem, essa última (o golpe barbosista) sequer vou discutir, dada a característica delirante. Por ora, comento apenas a afirmação de que a “burguesia” estaria por trás de tudo, incentivando e mesmo pagando aos baderneiros. Afirmação equivocada, para não dizer de má fé, pois o mínimo de conhecimento da história das manifestações populares, em qualquer lugar e tempo, sabe que os baderneiros costumam se aproveitar até mesmo de desastres naturais, como terremotos ou furações para destruir e saquear. Quanto a burguesia vilã, vejamos: não é de hoje que o mundo carece de reformas, especialmente de discurso. Colocar a culpa na burguesia é um discurso, a meu ver, distorcido, para não dizer ultrapassado. A chamada “burguesia” de 20 ou 30 anos atrás empobreceu, recolheu-se atrás de portas gradeadas, faz cotas para pagar uns cobres a um vigia noturno que circula com velha motocicleta, em alguns casos bicicleta, munido de um apito... Eu estou a ponto de aplicar aos atuais “burgueses” que saíram às ruas pedindo diminuição do valor da passagem de ônibus urbanos ou serviços de saúde de qualidade o epíteto chicobuarqueano:“Dizem as más línguas que até trabalham/ Moram longe e chacoalham num busão!” 
Os modernos vilões são os agentes do capital financeiro internacional, esses sim, capazes de levar milhões à fome e miséria num simples clicar de mouse (os nossos orgulhosos hermanos chamam muito apropriadamente ratón!). A equipe de pesquisadores comandados por Edgar Morin, estima que o PIB mundial é de cerca de 54 trilhões de dólares enquanto o volume financeiro que circula no mundo é de 540 trilhões, 10 vezes mais que o real e é claro que alguém paga por isso: uns enriquecem e outros empobrecem, como em magia. O Capitalismo pode ser encarado de muitas formas. Uma delas é que sua influência dessacralizou o mundo: reduziu à cinzas os antigos valores, a própria relação com o Divino e também com o Humano, alterando as relações sociais de maneira que a antiga aristocracia medieval jamais sonharia: rompeu todas as barreiras morais possíveis, até o corpo humano se tornou mercadoria legal através das propagandas, associando-o sempre aos objetos desejados. Por outro lado, a esperança humanista sonhada pelos comunistas perdeu-se na instalação dos regimes de força e a seu modo, também rompeu com as barreiras morais construindo um império de concreto e aço. Deste modo, igualou-se ao capitalismo ao transformar seres humanos em coisas: o capitalismo oferece uma ilusão de liberdade enquanto o comunismo a anula, em nome do coletivo. A ilusão de liberdade se sustenta, entre outras coisas, pelo culto ao individualismo, enquanto o castelo de concreto e aço do comunismo descobriu-se construído em terreno arenoso. Enfim, ambos fracassaram enquanto projetos humanos universais. O mundo precisa de uma terceira via e parece-me que as manifestações populares no Brasil caminham nessa direção (essa terceira Via só será possível através da reforma que começa pelo pensamento: a velha política esgotou-se. O ex presidente Lula orientou os sindicatos a irem para as ruas convocando o Dia Nacional de Luta e nem com militantes pagos conseguiu emplacar.. Será que entenderam mais esse recado das ruas?) 

O momento é de reforma, do pensamento e da velha e falida política! A política, talvez seja a esfera mais importante de nossas vidas, em nada mudou estruturalmente. Continua hoje como era há um século ou mais, enquanto outros aspectos de nossas vidas foram completamente revolucionados – instituições psiquiátricas, a tecnologia, informação, a entrada da mulher no mercado de trabalho, direitos civis dos negros nos EUA, o apartaid, etc., - enquanto a política continua com seus vícios, suas práticas perniciosas que confundem responsabilidades com poder, quando deveria ser o oposto, ou seja, o poder com responsabilidade; como servidor,o comportamento do político deveria ser exemplar para a sociedade. O político, o Governo que é complacente com a corrupção e o nepotismo, tira do homem comum não apenas a saúde, a educação, a cultura: degrada-o e assim, rouba-lhe a dignidade. E, desta forma, a própria noção de governo se degenera.
A Voz das Ruas, com todas as suas contradições, tem apelos claros: é inútil tentar inseri-los em categorias ideológicas pré montadas (poderiam se encaixar nos modelos do materialismo dialético, como insistem alguns marxistas?). Se a saída não está nos partidos, onde está, então? Se eu soubesse ficaria rico, como aquele japonês/americano (Francis Fukuyama) que decretou o fim da história e meses depois explodiria o conflitos das Bálcãs.

A verdade – se há verdade! – é que a solução não está pronta. Ou melhor, não existe solução pronta ou recairíamos no mesmo erro; a possível solução nascerá da reflexão que formos capazes de articular no tempo presente...

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