A viola representa de fato um modo de vida – e não somente enquanto metáfora!
Viola caipira, belo instrumento, de sonoridade peculiaríssima, também demarca territorialidades, estados de espírito e é mais ou menos nesse sentido que podemos afirmar que existem diferenças profundas entre um violeiro e um bom tocador de viola; o violeiro de fato se identifica completamente com o instrumento, revela-se enquanto ser em toda a plenitude, possui uma relação umbilical com a mesma, é quase uma extensão de seu próprio corpo, a viola é seu recurso expressivo através do qual se afirma, e não apenas um objeto, nas mãos do violeiro, adquire personalidade própria, alma, aura; o bom instrumentista, porém, seguro de si e de sua técnica, mas com atitude presunçosa por mais leve que seja, toca corretamente, porém, sem emoção e o toque soa sem graça,nele o instrumento se revela gasto e velho, arcaico; dele a viola se distancia em espírito, abandona-o por fim, é sua vingança: ela, a viola, não quer ser domada, quer ser conquistada e para tal, é exigente e tinhosa como toda amante, no entanto fiel e amorosa, devolvendo em harmonia e beleza todo empenho e amor que lhe foi devotado.
Viola e violeiro estão um para o outro como o poeta para a poesia: a poesia é a linguagem primeira do homem, anterior à fala propriamente dita, por isso, sua realidade está no ritmo: fazer poesia não é um simples manuseio ou manipulação de palavras: a poesia está numa paisagem, numa flor, num olhar, numa carícia, num sentir; o poeta é todo aquele que consegue traduzir tais imagens em palavras, mesmo sem o saber. Algo parecido acontece com o violeiro e a viola: não se trata somente da técnica: o sentimento é o conteúdo, ao mesmo tempo corpo e alma, engendrados, amalgamados; por isso, se diz: hái violeiros e violeiros!
Seja o solitário caipira do interior paulista ou mineiro; o alegre caiçara do litoral; o sertanejo nordestino, todos eles, pouco importa a afinação ou o sentimento que traduzem – alegria ou melancolia – tem a viola acima de tudo como companheira, amiga, musa. Felizmente, no Brasil de norte a sul temos violeiros prodigiosos e poderíamos escrever compêndios enaltecendo a qualidade e seriedade dos nossos grandes violeiros. Nesta ocasião, escolhi falar de dois grandes violeiros por uma razão especial: eles são, assim como muitos outros neste brasilzão, verdadeiros agentes polinizadores, levam a quem os ouve muito mais que belos acordes.
O paulista Levi Ramiro e o mineiro Wilson Dias são dois violeiros que fazem parte do grupo dos violeiros de fato que representam e honram a tradição deste instrumento que é sinônimo de importante aspecto da cultura brasileira: a viola é mais que um instrumento, (do mesmo modo que se diz que o Barcelona, time de futebol da Catalunha,“é mais que um time", representando a própria nacionalidade e sua luta, cuja história se confunde com a do povo, criando elos indissolúveis).
De Pirajuí, Levi Ramiro, além de hábil instrumentista, compositor e contador de causos, é luthier dos mais criativos, o que o qualifica como verdadeiro estudioso do caipirismo. Ele é, por exemplo, o redescobridor da viola-de-cabaça, velho recurso de quem não podia adquirir o instrumento devido ao preço: o talento de Levi fez surgir uma variação interessantíssima: a cabacítara, que tem no violeiro matuto moderno Ricardo Vignini provavelmente seu melhor executor – oiçam, quem puder, “Na Zoada do Arame”, onde Vignini utiliza várias violas, dentre elas a cabacítara.
Neo seu trabalho, “Prosa Na Base do Ponteio”, Levi refaz com sabor de novidade uma cena comum no universo da viola: imagine-se uma “roda de violeiros” onde todos brincam livremente com trinados e ponteios e o melhor da festa é que nessa roda estão violeiros e parceiros de partes diferentes do país: com cada um deles Levi dialoga “..na base do ponteio”. Assim, lá estão: Carlinhos Ferreira, Daniel de Paula, Indio Cachoeira, Julio Santin, Magrão, Marcos Azevedo, Milton Araújo, Norberto Motta, Papete, Paulo Freire, Paulo Gabiru, Rainer Miranda e Zé Esmerindo. Uma escarcéu, uma lindeza de delicadeza, criatividade e ousadia
Da cidadezinha de Olhos d’Água, no Jequitinhonha, Wilson Dias, se apresenta como uma espécie de “retratista” sonoro: recria, através de seus acordes, cenas e situações vividas e presenciadas nos sertões de sua Minas ao longo de sua vida: um colibri, uma fonte d’água, uma expressão lingüística, um acidente, e tudo que ficou registrado na memória afetiva se transforma em música. Mas Wilson Dias faz mais: com o auxílio do arranjador André Siqueira, recriam as cenas harmonizando-as com novos instrumentos norteando um amplo leque de aberturas para improvisos para deleite de novos ouvidos sem ferir a sensibilidade da tradição; sutileza e arrojo, e junta-se a delicadeza da memória recriada que nada fica a dever as melhores jamsessions – não fosse Wilson Dias figura pacata e singela e diríamos ver em ação um endiabrado instrumentista a lembrar John Lee Hooker...
Costuma se dizer, não sem razão, que o mundo dos violeiros é conservador. Acho que isso é verdade, os violeiros são muito apegados à tradição e isso vale a irritação de muitos que os acusam de tacanhos e retrógrados. Porém, quem assim pensa, precisa antes de emitir quaisquer opinião, ouvir os discos de Levi Ramiro “Prosa na Base do Ponteio” e Wilson Dias “Mucuta”: são a prova viva das inúmeras e variadas possibilidades da viola...... E tem mais, mais e muito mais: estão por aí, para não me deixar mentir, Valdir Verona, Paulo Freire, Adelmo Arcoverde, Julio Santin, Indio Cachoeira, etc., etc. etecetera!!!
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WILSON DIAS E LEVI RAMIRO: E O QUE PODE A VIOLA!
Viola e Cia
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