NÃO É O QUE PARECE: REFLEXÃO DE COMEÇO DE ANO

Passei o natal no interior de Minas, numa cidadezinha muito próxima a São Paulo, o Estado. É desses lugares isolados, literalmente um fim de mundo. Por lá, a globalização se chama TV, o que é muito, pois altera o modo de falar, de certa forma, até os relacionamentos. Um breve passeio pelas ruazinhas de paralelepípedos nos faz entrever lampejos de luzes coloridas por trás das cortinas das janelas e um ouvido um pouco mais acurado percebe os mesmos ecos, os mesmos ruídos, as mesmas vozes artificiais a encher os ares.
A invasão dos sertões não vem sob a égide da rica dramaturgia, e sim a mais reles. Os meninos e meninas, oriundos dos cursos de “formação de atores” com estágio na série Malhação, não são atores! São trabalhadores da telinha, produzidos aos magotes, autentica “linha de montagem” e a “dramaturgia” produzida em ritmo industrial é, no mais das vezes gigantescos comerciais, invadindo milhões de lares à fórceps e os jovens sem opção, aderem ao padrão global. Outro aspecto da globalização: numa modorrenta tarde de sábado, um carro com potentes autofalantes trepida pelas ruazinhas, estaciona diante de uma sorveteria e dele saem 3 rapazes pálidos com ar imbecilizado. Abrem a porta do portamalas e o ruído do funk assola, sobe em volutas compactas e ásperas e desaba implacável, esmagando e afogando a cidade: por instantes, nada parece se mover na atmosfera petrificada e subitamente cinzenta, com exceção dos rapazes e seu andar bamboleante. Se a intenção era impressionar, foram bem sucedidos! Tempos esquisitos, esses, contudo, sigamos!
Minas é Minas, mina das minas, lembranças do antigo grupo musical de mesmo nome. E estar na terra de Rosa, é partilhar de um mundo rico de histórias. Por isso, me deixo levar, imagino-me nos caminhos por onde andou Dércio e muitos viajantes europeus nos primeiros séculos. Terra de violeiros, de poetas. Terra de Tavinho, terra do ouro, terra de Brandt, terra de Consuelo. Terra dos ternos de reis, das congadas, das folias, da toada. Do café com broa de milho, do pão de queijo de verdade. Do queijo e da cachaça.
A História não deixa mentir e Minas tem uma história que é o orgulho de todos nós. Entretanto, já estive em cidades mineiras onde tive dificuldades em encontrar um restaurante de comida típica, muito ao contrário do que diz a propaganda oficial dos folhetos turísticos. Visto sob o viés da globalização, em alguns aspectos, Minas é uma utopia para os próprios mineiros. Contudo, admitamos que as verdadeiras jóias não se mostram abertamente, sempre carecendo um esforço para se descobrir os caminhos do Peabirú, o caminho do ouro, a Estrada Real.
A cidade à qual me refiro é na divisa, onde Minas é meio São Paulo e vice-versa, onde nossas histórias e nossos sotaques se confundem. Fui para lá para fugir da muvuca que toma conta de Sampa nos festejos de fim de ano – nada contra, adoro a muvuca do ser-tão paulistano, mas desta feita quis algo diferente. Uma vez por aquelas paragens, dei-me conta de que refazia um antigo percurso: estava, de certo modo, refazendo o caminho dos antigos Tupi-Guarani da costa brasílica que após os infortúnios resultantes do contato com o conquistador, partiram em busca da Terra Sem Mal, versão indígena do Paraiso Terreno, assim como no passado os hebreus partiram em busca da Terra Prometida e os europeus numa Europa devastada pela peste negra, imaginavam o Paraíso Terreno no Novo Mundo.
Nos dias que correm as agencias de viagens assumiram o papel dos antigos profetas e prometem a felicidade à módico preço em dólares e a prestação! E assim, continuamos em busca do Paraíso, de novos mundos, mesmo que o tal se apresente sob forma de alguns metros de areia numa praia lotada, uma barraca de camping montada no quintal de casa ou um banho de cachoeira numa região ignota. E estamos sempre tentados e vislumbrar o Paraíso num determinado lugar, assim fica mais fácil deslocar de nós próprios a responsabilidade por nosso destino. Onde houver possibilidade de ser feliz, para lá seguimos, em romaria! Somos crédulos, acreditamos em promessas, sejam políticas ou amorosas!
Refletia sobre tais idiossincrasias ao sair para correr por uma estradinha asfaltada que passa ao lado da casa de onde estou hospedado. Tudo ali é perfeito: árvores de ambos os lados, silêncio, ar fresco, cantar de pássaros. Não sei se a visão do asfalto que soa algo meio destoante, como uma cicatriz tortuosa em meio a natureza, mas uma sensação de insegurança, um incompreensível mal estar, me persegue. Segundos depois, compreendo: um súbito e breve rugido de motor de automóvel me revela a razão do mal-estar. Emerge atrás de mim, numa curva, a mancha branca sobre o furioso motor e o estridente cantar de pneus. E segundos depois, com uma espécie de bafo maléfico, passa a meio metro de mim a uma velocidade não inferior a 120 kmh! E a forma esbranquiçada desaparece, com os seus 120 kmh, num local que não deveria passar dos 40 kmh, de acordo com as placas! Meio apavorado, constato que nem tudo é o que parece. Naquele lugar aprazível, de uma hora para outra somos assolados pelos demônios da velocidade e outros demônios. A gostosa experiência de correr, de um momento para outro, é assolada por pressentimentos terríveis e fico a imaginar se ao final de meu exercício supostamente saudável, estarei ou não nas estatísticas de atropelamentos nas estradas brasileiras. Pior é imaginar que ser atropelado naquele lugar anônimo é ser deixado lá, se o motorista seguir o ritual de fugir sem socorrer a vítima! Por um segundo, pensei no filme Deliverance/Amargo Pesadelo, onde uma pacífica região selvagem oculta os mais sombrios sentimentos! Como estou escrevendo aqui, não fui atropelado, medalha para meu anjo (ou anja?) da guarda!
Pouco adiante, alcanço outro corredor. Corredores são todos amigos, mesmo sem nunca terem se encontrado. Correr, assim como escrever, é um ato solitário, e ao se deparar com outro, de algum modo, se sabe o que o outro sente, e mesmo o que pensa da vida. Correr em dois dá uma sensação um pouco maior de segurança - sensação enganosa na verdade, pois se um daqueles motoristas malucos nos atropelar, será dois em vez de um, solidariedade bem estranha. Nos cumprimentamos e correndo lado a lado, no segundo seguinte estamos trocando impressões – ele também se assustou com o Gol veloz, mas estava tranqüilo, quase achando graça da “loucura daquele imbecil correr sem necessidade”. Corremos juntos alguns quilometros e tive de voltar, ele seguiria até a cidade seguinte, onde a namorada ia buscá-lo. Nos despedimos, com efusivos desejos de "boas festas". Uma boa energia, que me seguiu nos quilômetros de volta.
Enfim, de volta a Sampa, “quase feliz” em correr pelas ruas, disputando espaço com os carros! 2014 é ano que promete, estou certo de que vamos ter grandes e bons acontecimentos culturais. Levo no alforje os seguintes versos:
“Bonita não é a vida
Bonito é saber viver”, do disco “lira do povo, de Kátya Teixeira
“A esperança é insistente (...)
A esperança é permanente (...)
É sempre sobrevivente”, do disco Dança das Rosas, de Consuelo de Paula
Bom ano novo!!!! VIVA!!!!
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