TIPOS URBANOS, HUMANOS, PAULISTANOS...

Quem de nós se lembra de uma “velha louca” de nossas infâncias, como canta Tavinho Moura em Chaleira do Alto da Poeira, regravada por Pena Branca e Xavantinho? A figura do “doido” era muito comum, o louco da rua ou da praça, figura lendária, conhecido de todos, alimentado e cuidado por todos, no geral inofensivo, tal como o curioso personagem do filme “Cinema Paradiso”, que ao anoitecer “expulsa” todos de “sua” praça.
O “pinguço” homérico era apenas um chato, que enchia a paciência de todos, mas era tolerado, as pessoas se preocupavam com ele, levavam em casa ou ao médico. Às vezes tinha também a mulher carola que ao beber uns tragos dava shows, levantava a saia para deleite da molecada que lhe seguia aos magotes assobiando e vaiando, para a indignação e vergonha da família. E em quase todas as ruas tinha o desocupado que vivia pedindo moedas para “uma dose”, meio maluco, amigo de todos, que tomava conta das casas quando as pessoas viajavam, tudo em troca de uns trocados, de um prato de comida, de uns tragos.
São histórias de outros tempos, que soam anacrônicas nos dias de hoje. Mas em alguns bairros periféricos da Grande São Paulo ainda são encontrados. Lembro-me de um desses desocupados na rua da minha adolescência, no Jabaquara, que nos dias de feira pedia ou recolhia sobras de frutas, verduras e legumes, lavava direitinho, colocava em saquinhos transparentes e depois ia oferecendo nas casas. E sempre acabava vendendo toda a sua produção, pois era “baratinho”...
O progresso e as mudanças de costumes impuseram novas condutas. No afã de uma existência confortável e segura, nos esterilizam de toda a sujeira, de toda incoveniência, principalmente nos livram de tudo e de todos que não se enquadram no nosso sistema de produção e consumo, em suma, em nosso sistema social. E ficamos “protegidos” intramuros e grades, carros brindados e nossa atitude perante o “estranho” é sempre de desconfiança. Na origem de tudo, a incompreensão, sintoma do processo de alienação que nos faz distanciar de tudo o que não podemos decifrar; e não podemos compreender porque não temos mais uma visão da totalidade, do mesmo modo que o operário na linha de montagem não tem idéia da totalidade que produz. Somos modernos, somos rápidos, somos eficientes, dinâmicos. Mas mergulhamos demais em nós mesmos, em nossos apartamentos, em nossos próprios interesses, esquecendo que somos coletividade; nos alienamos da vida ao redor, ignoramos o outro, o vizinho. O que hoje chamamos de vida social é um desfile de egos. As redes sociais estão cheias de tipos ideais, de eus; o facebook é um exemplo, a gigantesca vitrine do Eu de cada um, por isso, a cada passo se depara vez ou outra com o chamado fake, o personagem fictício cuidadosamente elaborado...
Nos dias vigentes os loucos, os mendigos, os “estranhos” são confinados em asilos, albergues ou manicômios, isolados enfim. É uma débil tentativa no perigoso caminho de fazê-los “deixar de existir”. Existem, por exemplo, as profissões invisíveis, aqueles que não são dignos sequer de um cumprimento, de um “bom dia”. Contudo, os estranhos, os marginais ou os exóticos não desapareceram: estão por aí, estão por toda a parte, por nossas ruas.
Certa vez, conversava com um amigo, dono de um sebo nas proximidades da Consolação, quando chegou um tipo simpático, dirigindo-se a nós como se fosse pedir uma informação, quando anunciou: “Depois de Buda e Jesus, eu!” E saiu, com um sorriso confiante, nos deixando atônitos e só nos coube cair na gargalhada.
Há tempos costumava ver pelo Centro Velho ou Novo uma mulher, toda coberta com longas vestes brancas ou azuis, lenço de seda na cabeça, que vivia distribuindo alimentos para os pombos da cidade. Ouvi muitas notícias sobre ela, desde que seria uma milionária excêntrica, a alguém que estava pagando promessa ou que simplesmente tinha parafusos de menos ou de mais. E também havia quem dissesse que era apenas alguém que distribuía milho aos pombos...
Vez ou outra vemos no Largo do Correio ou começo da São João, o famoso saltador do “círculo de facas”: muito magro, cabelos compridos, faz uma série de pantomimas anunciando o feito futuro, sábia estratégia visando cativar os indecisos a jogar uma nota ou moeda em sua caixinha. Depois de muita “enrolação”, dá um único e arrepiante mergulho por entre as facas pontiagudíssimas, saindo ileso do outro lado, sob aplausos...
Há os vendedores de ervas e garrafadas que curam enxaquecas, barriga d’água , impotência, extraem bernes e calos, etc. E tem os surpreendentes artistas “de rua”, malabaristas, sanfoneiros – muitos mirins –, duplas caipiras, rabequeiros, “quartetos, quintetos peruanos, bolivianos tocando seus instrumentos típicos e vendendo CDs, geralmente com versões de sucessos internacionais...
E a mulher que costuma entrar nos vagões do Metrô pedindo esmolas através de uma espécie de ladainha, na qual conta sua história e pede ajuda de qualquer tipo... Nas ruas, outros expõem aberrações físicas com olhar súplice enquanto estendem a mão, entoando pedidos de esmola que lembram “incelenças”... Reminiscências da “era provinciana”, quando o circo era uma séria opção de lazer. O circo tinha seu encanto e também suas misérias – a música, os trapezistas, o “globo da morte”, os anões, o palhaço, as feras adestradas, a mulher barbada, etc.
Os pregadores apocalípticos são presença quase obrigatória, a qualquer hora. Parecem saídos do túnel do tempo, metidos em ternos e gravatas, pouco importa o calor: anunciam o fim dos tempos, os castigos, a ausência de Deus nos corações. As pessoas ficam por ali, ouvindo assustadas sobre o exílio divino do mundo dos homens, mas que a batalha entre a Luz e as trevas não tarda, é já! São as forças que alimentam a filosofia e a literatura desde que o mundo é mundo: Mefisto, O Senhor dos Anéis, a saga Guerra nas Estrelas, a série Harry Potter, todos tratam do eterno combate luz x escuridão. Noutras esquinas, músicos ambulantes, palhaços.
Degustando um rápido churrasco grego com K-Suco, homens com sacolas a tiracolo, mulheres com bolsas. Aparentam ser vendedores de porta em porta. Sim, eles existem, resistem, concorrem bravamente com a internet e malas diretas: vendem filtros de água, produtos de limpeza miraculosos, cosméticos; o amolador de facas e tesouras, o vendedor de peixe numa carroça puxada por burro ou numa bicicleta dotada de uma caixa de isopor na garupa. Será que ainda vendem Enciclopédias Britanicas? Não duvido!
Tipos humanos, tipos urbanos. Além das profissões que se julga extintas, os meros vagabundos, os vigaristas. Só na Pólis tal é possível: isto é a Pólis, sua gênese. Desde a formação dos primeiros burgos, que os tipos marginais se aglomeram nas fímbrias das atividades da PEA (População Economicamente Ativa). Brotam do nada, nos países ricos, nos países miseráveis. Somente as ditaduras sanguinárias lograram suprimi-los, sabemos como! Mas, mesmo que não apareçam, estão sempre por aí! Por um lapso infinitesimal de tempo, revelam-se nossos espelhos, o outro lado, aquilo que negamos em nós: mas, nos lembram que somos, antes de tudo, seres humanos.
"Somos paulistas, gaúchos, bainos, americanos, europeus, nigerianos, japoneses. A paisagem é a mesma em todo lugar. Cada vez nos tornamos iguais, não em direitos e beneficios, mas no modo de viver e ver o mundo". (Inezita Barroso, no livro Com a Espada e a Viola na Mão, da Coleção APLAUSO, imprensa oficial do Estado).

Aqui Chaleira do Alto da Poeira de Tavinho Moura e Fernando Brant.
Na interpretação de Fernando Brant, Tavinho Moura e Mariana Brant



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