Onde já se viu, ora vá!
O violeiro Paulo Freire, há muitos anos de estrada vem construindo um legado importantíssimo para a cultura brasileira. Além de exímio violeiro, arte aprendida diretamente com os mestres do sertão do Urucuia, lugar por onde andou Guimaraes Rosa, de onde colheu os elementos para compor uma das maiores obras da literatura mundial, que dispensa comentários. Como quase todo jovem citadino de seu tempo, Paulo flertou com a guitarra elétrica. Mas levou mesmo a sério o violão clássico, que, imagino, tenha sido fundamental em sua formação como músico e o ajudou nas escolhas a seguir: leu Grande Sertão: Veredas e o encanto foi arrebatador. Pôs mochila nas costas e cismou de conferir se aquilo podia ser de verdade.
E não é que era? Passadas décadas, grande parte do sertão roseano, ainda estava lá, os buritis, as chapadas, as gentes e o que deve tê-lo encantado: o som das violas, os cantos, além das prosas, quitutes e cachacinhas preciosas. Imagino que tenha deixado o violão clássico de lado e mergulhou a fundo e de cabeça na viola caipira e seus toques, especialmente o rio abaixo, afinação clássica, ao lado do cebolão. Seu principal Mestre foi e é, “seu” Manelim de Oliveira, de quem também desenvolveu a arte de contar causo. Que bom, que bom! Uma arte que estava relegada aos grotões pode ser resgatada e mostrada pra todos nós.
Paulo é filho do escritor e terapeuta Roberto Freire, também ele escritor e casado com Ana Salvagni, uma das vozes femininas mais bonitas que conheço. Seus discos são sempre primorosos, feitos com muito cuidado, preservando ao máximo a pureza de onde foi originado. Do último, “Alto Grande”, reproduzo da íntegra a letra de uma das faixas, logo abaixo. É uma mistura de “causo”, de “moda”, repleto de ironias e sutil critica social, mostra a genialidade de quem não apenas repete a tradição, mas a recria! Que cada um tire a conclusão! Com oceis, Paulo Freire, violeiro:
É MEU (Paulo Freire)
Estrada
Eu e minha namorada
Caindo na estrada
Muito longe da cidade
Ela disse: para motorista, olha a vista
O ônibus encostou
Descemos no caminho
E u ela sozinhos
O canto da água nos levou pra beira
Da cachoeira.
Eu e minha namorada
Entramos no rio
Deitamos na pedra quente
O sol pingando em nós
Namorando e nós namorando
Eu e minha namorada
Voltamos pra água
Eu e minha namorada carinho, mergulho,
Mergulho, carinho
Bem devagarinho
Secamos ao sol
Pusemos a roupa
Seguimos nossa caminhada
Mochila nas costas
Trilhas montanhas
Uma cerca pulada.
Clareira na mata, barraca
Fizemos fogueira
Deitamos estrelas
Deitamos na relva
A lua girando
E a gente namorando, namorando.
Dormimos
Cansado e cansada
Eu e minha namorada
Passamos a noite
Abraçados, enluarados
Veio o sol lamber nossa mão
No rosto a nascente gelada
Mixirica na trilha
Seguimos caminhando, passarinhando.
Galho sapeca a perna
Outra cerca pulada
Ora, pois (o mesmo, "a poi", que se diz em partes do Mato grosso)
Lá vinham os dois
Medalhão de otoridade, chapelão
Gritavam “Parem!”
Tinham uma arma na mão
“Parem, alguém deixou vocês entrarem?”
Retruquei: “sim, quer dizer, não.”
O capanga e a otoridade
Com a arma na mão
“Fora daqui, não podem entrar,
Isto é uma propriedade particular!”
O capanga e a otoridade
A gritar, a mandar.
Peraí, eu disse
Bom dia moço, calma, respira
Passeamos na mata, nadamos, namoramos
Veja como felizes ficamos
Eu e minha namorada
Viemos da estrada
Cachoeira gelada
“Cala a boca, moleque!
Olhe pra mim, nós, quer dizer, eu
Fora daqui, isso tudo é meu!”
Abriu os braços, mostrando aquele mundo
O cara enlouqueceu
“Fora daqui, isso tudo é meu, é meu, é meu!
Silencio
Eu e minha namorada
Nos tocamos, sorrimos, rimos
Da frase repetida
“Fora daqui, isso tudo é meu!”
Do homem otoridade
E a gente respondeu:
Tudo é seu, tudo
Como pode, seu cabeçudo?
A fogueira, o luar na mata,
Mixirica na trilha
Nosso cansaço embaixo do sol
Como pode ser seu?
O carinho, o mergulho
O sorriso namorada
A vista, o rio, a caminhada
Nosso namoro, passarinho
Estrela, o céu, tudo isso é seu?
Viramos as costas
Fomos embora
Voltamos para a estrada
Eu e minha namorada
Rimos muito, foi o jeito
Do ridículo daquele sujeito
Tudo isso é meu...onde já se viu?
Ora, vá...
Isso é tudo seu...