Para el que mira sin ver / La tierra es tierra no más (Atahualpa Yupanqui)
Há pouco tempo, em mais um evento do “Dandô – Circuito de Musica Dércio Marques”, em São Paulo, tivemos a oportunidade de conhecer o cantor gaúcho Giancarlo Borba.
Antes de apresentarmos Giancarlo, uma palavrinha sobre o Dandô, esse pequeno milagre, iniciativa da cantora, compositora e pesquisadora de cultura popular, Katya Teixeira - a respeito do qual haveremos de falar oportunamente em postagem mais específica.
É um milagre por se tratar de uma ousada iniciativa de espalhar a possibilidade real, concreta, de enfrentamento do mercado padronizado da música. A música padronizada segundo receitas de “sucesso” pode não significar exatamente “porcaria”, mas seguramente é engessada pelas tais expectativas do mercado ou simplesmente confinada pela “mesmice” dos menos ousados. E o que é pior, triste e prejudicial para os próprios artistas e público: a restrição a um clubinho de afortunados que seguem a regra onde “quem está fora não entra e quem está dentro não sai.” Círculo vicioso, roda da fortuna para uns, barreira invisível para outros, um misterioso grupo avalia projetos e editais com critérios ainda mais misteriosos e decide quem pode e quem não pode desenvolver projetos culturais. E assim, ano após anos, geração após geração, as artes em geral - música, teatro, literatura, etc. - tudo gira sempre em torno dos mesmos nomes, projetos e estéticas. A grande estrutura comercial que aí está habituou-se a lidar com o publico meramente consumidor. O “Projeto Dandô” prova que existe vida fora da industria cultural, que existem outros interesses além do consumo por si só, que “arte” também é conhecimento, que a arte também nos induz a lançar outros olhares, pontos de vista sobre a realidade. O Dandô é um alento. Mostra que é possível quebrar pelo menos parte esse esquema petrificado. Por si, essa possiblidade é o pequeno milagre. Nos quatro cantos do país o “Dandô” tem sido o ponto de fuga, de convergência, de irradiação:
E foi assim que, em São Paulo, na sede do Sindicato dos Jornalistas, Katya foi a anfitriã de Giancarlo Borba, retribuindo a acolhida pelo mesmo em terras do Sul pampeano.
Quando de fala em música do Sul, o que primeiro nos ocorre é a imagem típica, tornada estereótipo, evocada pela indumentária, os ritmos característicos, o sotaque, o chimarrão e a intensa militância de um lado ou de outro. Não é a toa o forte sentimento nacionalista, goste-se ou não. O
minuano, vento que sopra cortante e impiedoso, induz a sensação de luta constante e ao pragmatismo daí recorrente: uma vala aberta no chão, a costela do novilho, um pouco de sal, algumas varetas finas cortadas a facão e se tem o mais apetitoso banquete. Sua música é igualmente intensa, emotiva, carregada de paixão, exagerada; o sentimento é exposto cruamente, pois assim é a vida daqueles homens solitários que ao longo da história de sua formação acostumaram-se a enfrentar toda sorte de adversidades.
A figura de Giancarlo Borba, á primeira vista não foge a imagem: a origem imigrante, cabelos compridos, as bombachas, a cuia de chimarrão, a guitarra em punho, o indelével sotaque. Abre o show com uma
milonga e melhor apresentação para um gaúcho, não pode haver:
milonga, nome africano, entretanto, impregnado na própria condição de ser do homem do
pampa, compõe a identidade gauchesca, é-lhe como uma segunda natureza, seja no campo ou na cidade.
O que teria em comum a África e o Sul da América, além das diversidades étnicas? Isso não explica por si, pois diversidades semelhantes se espalham por outras partes e nem por si, nos outros lugares se pratica a milonga. Por isso, gosto de pensar nisso como esses mistérios encantadores que compõe a história dos povos e dos lugares, que se impõe a despeito das vontades ditas “oficiais”; o próprio termo “gaúcho” (de gáucho, como é chamado na Argentina e Uruguai) foi noutros tempos pejorativo, pois assim eram designados os pobres pelas elites coloniais. Embora eu não tenha competência o bastante, atrevo-me a uma explicação: a África e o sul da América tem uma paisagem comum – as savanas, os prados, o pampa. Esse fato por si não é um esclarecimento convincente, pois outras paisagens semelhantes podem ser encontradas em outras partes sem haver nenhuma relação aparente. Prefiro, assim, me concentrar no significado imediato e no ritmo da
milonga, e naquilo que nos sugere assim que ouvimos:sua monotonia evoca nostalgia,
recuerdos: seu embalo característico é como percorrer um campo infinito; cada
milonga executada é como um capítulo de uma história interminável, onde aqui ou ali, pequenas nuances, perceptíveis apenas para o profundo conhecedor, revelam seus mistérios e segredos, constituindo-se assim, numa metáfora ou representação da vida solitária dos campos, onde a monotonia é, na verdade, enganosa: cada uma das “pequenas nuances” desdobram-se em outras tantas, entre as quais, a própria
milonga seria apenas uma delas. O campo pampeano oculta mil tesouros e o moço Giancarlo os conhece:
chacarreras, zambas, chamarritas, candombes, rancheiras, mesmo a distante
baguala, batida de tambor dos índios do noroeste argentino lhe é conhecida, revelando que o isolamento na verdade não existe: há um diálogo permanente e que existiu desde sempre, mesmo a milhares de quilômetros de distância. A ignorância que o resto do Brasil tem do extremo sul é falta de interesse dos órgãos culturais e de divulgação. A verdade é que sempre houve comunicação e diálogo entre os povos: eu próprio, quando criança e morador em fazendas de gado na região do Pontal do Paranapanema, ouvia “cantigas de galpão” executadas por “campeiros gaúchos” que por lá aportavam (campeiros eram como era chamados na região os vaqueiros). Ouvia também guaranias, na voz dos “campeiros”, vindos do Mato Grosso e até do Paraguai, assim como se ouvia “aboios” de campeiros chegados de Minas. A região do Pontal, como se percebe, era zona de confluência, onde várias fronteiras se encontravam: extremo interior paulista, Mato Grosso, Parana, Minas, além de imigrantes espanhóis, italianos, japoneses, árabes e emigrantes nordestinos. Quem ouvir, por exemplo, a música de meu conterrâneo Indio Cachoeira, natural de Junqueirópolis, perceberá a imensa riqueza musical que forjou seu talento. Saibam que no famoso (regionalmente) Ranchinho do Sapucaia, programa de auditório da Radio Junqueirópolis, mais de oitenta duplas se apresentavam semanalmente durante as três horas de duração do programa. A música do Pontal, entretanto, é desconhecida do resto do Brasil e do próprio estado paulista, pois não se insere em nenhum grupo “midiático” (baiano, mineiro, matogrossense, nordestino, sertanejo, etc. A ironia é que a musica do Pontal é justamente tudo isso!) tão ao gosto da vertente tupiniquim da indústria cultural. (Uma dica: sugestão de leitura do post "A Musica do Pontal: seu Eujácio Rocha", sanfoneiro regional que teve um belo Cd produzido pelo meu outro conterrâneo, o violeiro Julio Santin, de Irapurú)
O MILITANTE
Voltando ao nosso convidado, Giancarlo Borba: bom de prosa, se apresenta como militante das causas populares. Seus olhos brilham e se emociona ao falar do apreço pelas gentes simples e pobre, os desafortunados, no campo ou nas cidades – foi-se o tempo da luta exclusiva pela terra: hoje em dia, os pobres lutam por moradia, por abrigo, por educação, por saúde: e sua posição de militante é clara, não deixa dúvidas de que lado está e não tem pejo em apontar as causas do imenso desnível causado pela desigualdade brutal que persiste como praga: se antes era o latifúndio, hoje em dia é a grande empresa, seja industria pesada ou de alta tecnologia, seja agro-industria, os impérios da comunicação, do ensino, da industria cultural. Pouco importa, onde quer que estejam, prevalece o cruel sistema, eterno, onde uns poucos privilegiados tem tudo e milhões recebem migalhas. Certa vez o historiador Evaldo Cabral de Mello escreveu que “..
.no Brasil, as modas são incorporadas com velocidade extraordinária. Só não muda a estrutura de poder.”
E o sistema se reproduz, se perpetua ao longo das décadas, num ambiente de massas escravizadas pela ignorância e pelo medo. Nosso atraso é real, concreto, estrutural; mas o que salta mesmo aos olhos é o atraso democrático, a ausência de cidadania (entendendo-se como democracia não apenas o sistema político, mas a própria vida, as condições de vida que necessitam ser realmente democratizadas: reforma agrária, reforma política, transparência). É nesse vácuo que o militante se intromete, nas fissuras do sistema, dando voz e forma aos excluídos. Na cultura musical gaúcha, são comuns os militantes e os tradicionalistas e as suas diversas colorações. Giancarlo, do grupo dos militantes, mescla a palavra dura do discurso com delicadeza poética e é assim que recoloca o tema das reivindicações populares na agenda: a luta por dignidade, no seu mais amplo sentido.
ARTISTAS MILITANTES, UMA LONGA LINHAGEM
A militância exercida por um artista não deve ser confundida com a típica militância política, mesmo que o artista esteja ligado a um grupo político. O artista militante não é o militante profissional, pois para ele, é uma profissão de fé, da qual não abre mão em nenhuma circunstancia. Ouvindo o jovem cantor, não podemos deixar de lembrar de Victor Jara, Atahualpa Yupanqui, Violeta Parra, Noel Guarani, Zeca Afonso, José Mário Branco, Garcia Lorca, Amparo Ochoa, Carlos Mejia Godoy, Woody Guthrie, Joan Baez, Peter Seeger, tantos e tantos, a lista seria infindável desses herdeiros de uma linhagem cuja origem se perde na bruma dos tempos, pois são artistas indiferentes ao chamado “sucesso”: para eles, a causa sempre foi o mais importante e foi a serviço da mesma que colocaram seu talento, sua arte e sua alma. Sem eles, o povo oprimido não teria voz.
Cada qual a seu modo e seu estilo, em sua língua, com sua voz e seu instrumento, sempre na estrada, sempre prontos: Giancarlo Borba é o jovem artista dos nossos tempos que de peito aberto solta a voz: sua poesia e sua música fala das rudes verdades campesinas ou citadinas; a denúncia é luta, é devoção, é aspiração, é seu próprio ar. Canta com garra, porém não vem armado: sua voz suave, melódica, fala da vida – mesmo a rude vida pela sobrevivência – com ternura e amor:
...
na mão que afaga o arado e arreio e semente e seio
Que sabe de mates e tristes tardes sem tu
(da canção “Do Que Cabe na Minha Mão”, que abre seu CD “Milongueiro”)
Ou
Quanto custa a dor
A dor da alambrador
Que recebeu como paga
Afagos e farpas de arame
Dos latifúndios do pago (de “Milongador”, que dá título ao CD)
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, diz a cantiga de José Mario Branco lá dos distantes anos 1980, porém, ainda hoje válida. A realidade imposta pelos poderosos de sempre continuam assombrando e assolando o país, onde a distancia entre os que tem e os que não tem, permanece praticamente inalterada, não obstante alguns esforços inclusivos, mas que em nada alterou a estrutura de poder.
SINA DE ARTISTA:
Não gosto da expressão “artista engajado”, o que pressupõe uma postura política e a política muitas vezes é tão somente uma sombra ou uma máscara. Giancarlo Borba é, como ele mesmo se define, um militante da causa popular e isso está a quilômetros da militância da causa puramente política – onde poderia se encontrar o “artista engajado”. Ele denuncia as mazelas, é combatente de linha de frente, mas, seu compromisso vai além do que podemos chamar atuação política: como artista, cumpre sua obrigação de ir além. Graças ao dom do qual foi dotado pelo Criador, enxerga além do irrisório comum. Faz de si mesmo, como cantor, o epíteto popularizado no Brasil através da versão de Dércio Marques para a canção de Pablo Milanès
“...pobre do cantor que não mantém seguro, seu proceder com todos!”
por essa ânsia e sede de justiça, ele – a quem chamamos artista militante na falta de melhor designação - fala aos corações, às mentes e aos espíritos. E sobretudo para as consciências dos homens de bem; consciências que porventura possam andar amortecidas ou submergidas e que por isso, perderam temporariamente a capacidade de olhar ao redor. E se olham, não vêem!
Nas mãos, a guitarra, a enxada, a caneta. A revolução está no horizonte do possível, graças aos poetas, os payadores sonhadores de nossa América. Poucas vezes se viu tanta sinceridade e tanta paixão em favor da causa das gentes simples, dos que lutam por pão, dignidade e paz:
Milongador prepare uma canção
Que faça adormecer os homens
E acordar as crianças (De “Milongador”)
Oportunamente haveremos de falar mais sobre o Dandô, que cresce cada vez mais: notícias boas se avizinham: produção de um CD, quem sabe um documentário... É torcer e aguardar!