Vem do campo, vem da vila De uma tarde na taberna Essa doce melodia Com cheiro de primavera Vem de séculos distantes A viola que dedilhas Nasce um solo, ganha vida Um poema em redondilhas. Meu irmão violeiro!
Nada mais apropriado: em continuidade do projeto “Dandô- Circuito de Musica Dércio Marques” teremos no próximo 04/12, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, a presença do violeiro gaúcho, Valdir Verona, apresentado pelo violeiro paulista, Julio Santin.
Como já é do conhecimento da maioria dos leitores deste blog, o projeto Dandô, idealizado por Katya Teixeira, circula pelo país, incessantemente. Artistas de diferentes lugares se apresentam em determinada cidade, sendo recepcionado por um artista local. O objetivo, dentre outros, é a disseminação de culturas “populares” que não tem a força da mídia para serem divulgadas e justamente por isso pode ser enquadrada no rol das “minorias” artísticas. Foi criado a partir de conversas de Katya com outros “dercianos”, como Luiz Perequê, João Arruda e outros para homenagear e também continuar o trabalho de Dércio Marques, o mestre que tinha o raro dom de aglutinar interesses onde quer que estivesse. Durante toda a sua vida Dércio formou artistas e públicos, tinha luz própria e irradiante que espalhou e continua a espalhar pelo país.
Em pouco mais de um ano o Dandô totalizou mais de 200 apresentações, algumas delas simultâneas, de norte a sul. E assim, a “minoria” aos poucos se converte em maioria, pois cada vez mais pessoas participam e conhecem a imensa e rica variedade musical do Brasil: é daqueles casos em que seguramente podemos ressaltar o altíssima qualidade em vez da quantidade.
O anfitrião Julio Santin: de Irapurú, cidade do extremo oeste Paulista, região de múltiplas fronteiras, Julio traduz em sua viola os ritmos que animavam bailes e quermesses desde o povoamento da região desde o inicio do século passado: região de imigrantes e emigrantes, influências indígenas, por muito tempo ficou praticamente intocada, até o final da década de 1970. Julio ainda conserva em si a atitude “reservada” do caipira que gosta de dizer o que sabe e o que pensa, de viola em punho. Tem dois importantes discos gravados, produziu o disco do sanfoneiro, seu Eujácio Rocha, do grupo Os Tangarás, que durantes as décadas de 60 e 70 animavam os bailes de toda a região.
Valdir Verona é um artista singular por vários motivos. Não é muito comum, por exemplo, a “função” de violeiro pelos pagos do Sul, onde o instrumento clássico é a guitarra (violão). Seus temas, entretanto, ecoam por toda a pampa e pelas coxilhas, pousam em cada estância, em cada rancho de peão, avançam por trilhas e estradas, adentram pelas casas do campo e da cidade, chegam até nós que o ouvimos com estranha familiariedade, que provavelmente se dá pelo sentimento geral e amplo de pátria e da fraternidade que nos une a todos, através da cultura; Valdir é artista plural, seu canto ressoa a voz do índio Sepé, do peão, do caminheiro, do aedo, do rapsodo. Ouvindo-o reconhecemos a ancestralidade que teve nos missioneiros Noel Guarani e Jayme Braun seus maiores expoentes; ancestralidade que é sua origem e a qual ele retorna, sempre, pois voltar ao principio, é recomeçar, é tomar o caminho seguro.
Seu canto é forte e poético, nele reconhecemos o payador. Mas não se restringe ao seu pedaço de chão. É fiel á sua gente, sua terra, sua cultura, mas tem algo de cosmopolita e assim revela outro Rio Grande, completamente diferente dos estereótipos com que são caracterizados pelo resto do país: o Rio Grande real é multicultural, é terra de índios, gringos, mestiços.
Com sua música, Valdir Verona revisita as tradições, mas não se detém a imitá-las simplesmente. Quem ouve seu belo disco "Na Estrada" ouvirá a conhecida canção Homens de Preto, de Paulo Ruschel, com o mesmo encanto da versão d’Os Gaudérios lá por fins dos anos 1950 e popularizada por Elis Regina. Mas o piano e a percussão empresta-lhe um incrível ar de atualidade, diria mesmo de modernidade. O solo pianístico a torna uma peça erudita, clássica e por vezes lembra o improviso jazzístico, e tudo isso sem perder nada do seu elemento tradicional. Tal versatilidade a meu ver, revela a origem erudita do músico, daí a extrema seriedade com que elabora seus temas, sempre abertos a dialogar com outros parceiros e outras linguagens musicais. Entretanto, ao soar a primeira nota e os primeiros versos, a quem o ouvir não restará nenhuma dúvida: aí está um gaúcho!
SERVIÇO:
Dia 04 de dezembro, as 19:30 horas, entrada franca.
O Sindicato dos Jornalistqas de São Paulo está localizado na Rua Rego Freitas, 530, sobreloja, Vila Buarque, pertinho do metrô República.
A cantiga abaixo transcrita faz parte do disco "Na Estrada" e conta com a participação do violeiro e cantador mineiro, Luiz Salgado. Em tempos de "redescoberta" da viola, creio que esta música seja uma síntese da universalidade do instrumento e sua prática, em cujo meio permeia uma sincera fraternidade. Lembro-me muito bem de minha infancia no Pontal do Paranapanema, onde, frequentemente nossa casa - na verdade um humilde rancho de madeira e chão batido - era local de roda de violeiros e contadores de "causos", á luz de lamparinas a querosene. A chegada de um violeiro forasteiro tendo às costas ou à garupa o instrumento era sempre bem vinda, pois violeiro e cantador era sinônimo de "gente boa". A viola e o canto eram o salvo conduto, do mesmo modo como em alguns lugares das Minas de "seu" Zé Côco do Riachão, "chapéu é documento." São belezas imorredouras que para sempre permanecerão em nossa gente, faz parte de nossa índole brasilica. O "Projeto Dandô", as andanças de nossos artistas, a cordialidade e hospitalidade em todos os recantos do país, de algum modo também é um resgate de nossa humanidade fraterna!
IRMÃO VIOLEIRO (Valdir Verona / Juarez Machado de Farias)
Meu irmão violeiro
Todo pássaro chora
Quando morre a cigarra
Na boca da viola
É, meu irmão violeiro
A tristeza é quem mora
Mora quando morre a farra
E a canção se vai embora.