O reduto derradeiro do que resta de cabras machos deve estar em polvorosa, talvez reunindo munição para um ataque frontal ou talvez simplesmente abismado e abalado: pois por todos os lugares por onde se buscam informações, a unanimidade em torno desta questão se imaginava absoluta – ou pelo menos até pouco tempo atrás: Lampião, o Rei do Cangaço é cabra macho impoluto, reserva viril a servir de exemplo enquanto houvesse no mundo um só que fosse varão capaz de dignificar a linhagem dos machos.
Ora, de verdades inquestionáveis costuma não pairar dúvidas: se sabe que ser ele o único capaz de sobreviver nas agruras das caatingas e do pampa e mesmo das matas, único capaz de enfrentar e dar cabo de todo e qualquer perigo iminente. Como uma maledicência de tal mote pode vir à tona?! A principio, pairou séria dúvida quanto a veracidade da informação, pois coisa desse naipe se fala é aos cochichos, em segredo de estado, pois macheza de homem é coisa que não se brinca e duvida, muito menos ainda do Capitão Virgulino. Deve se ter pensado ser obra de um doido varrido, quiçá um suicida, pois onde já se viu falar, escrever e assestar tamanha insensatez? Coisa pra se esquecer, como se faz com uma indiscrição.
Porém, a coisa era séria: quem asseverou e deu fé a extraordinária sentença foi um Juiz de Direito – aposentado, é o que dizem, contudo juiz, pois nunca nunca deixa de sê-lo, é condição sine qua non, é como presidente americano, sempre Mr. President, chova ou faça sol! Pois bem: aposentado ou não, o mesmo é Juiz: Meritíssimo, sempre o será, até que um dia a terra reclame sua parte e o chame a si e somente então, se igualará aos demais mortais, quando todos tornar-ão, pó! Porém, até lá, até ser devolvido a terra e tornado pó, Juiz de Direito equivale em terras brasílicas a um semideus ou em pior das hipóteses, é um cidadão muito além do comum. Melhor dizendo: não é um cidadão comum, uma vez que não é pra qualquer um a responsabilidade de aplicar ou não a condição de liberdade para o restante da humanidade: no momento da sentença, de toga ou sem toga ou mesmo de bermudas ou até nu, o Juiz paira sobre o restante do gênero humano. Sentença proferida, cala-te! Que se cumpra e tenho dito! Nunca assisti a um julgamento real – só no cinema – mas não deve ser diferente disso: o condenado que apele, ao papa que seja! Em suma: o Juiz é o ÚNICO a quem vale o apanágio que, quando proferido por outros mandões ou desmandões, é conhecido por “carteirada”, mas que para o juiz é verdade insofismável: “voce sabe com quem está falando?” Bom, se não sabe, fique sabendo, qualquer que seja o incauto: identificando-se ou não, Juiz é juiz e ai de quem não souber! A ele todos se rendem, de uma sentença nada escapa, nem o reduto dos últimos cabras machos; mesmo lá, no reduto dos inquestionáveis machos, nada a fazer, pois de palavra de Juiz ninguém é besta de duvidar. Um certo Excelentíssimo e Digníssimo Doutor Morais não gastou tinta, papel e caneta à toa, ao menos é o que se supõe de um aplicador da Lei, que, como sabemos, não está para brincadeira, pois é um semideus e demideuses não gastam seu precioso tempo com bestagens: ao fim de longos dias e longas noites e meses de ininterrupto trabalho o Doutor Morais pôs ponto final ao sacro trabalho e proferiu a sua mais pomposa sentença: Lampião, o Rei do Cangaço era gay!. E, mais grave, o Meritíssimo e Emérito e Digníssimo Defensor e Aplicador da Lei, foi além: não era somente o caso de proferir a descoberta retumbante relacionada às preferências sexuais do herói para muitos: seria uma reles bicha, um dissimulado que se fazia passar por algo que não era, enfim, alguém pouco, mas muito pouco confiável, diferente, mas muito diferente daquele que assume e sai do escuro do armário, tal como os modernos costumes recomendam. Por toda parte, mas especialmente naqueles sertões, designar alguém “bicha louca” é um tipo de avacalhamento mesmo da condição, já desgraçada em si mesma num mundo onde a macheza é documento de identidade. A propósito, se a intenção do magistrado era esculachar, não fez nada menos que isso: pôs no herói o que o sertanejo mais abomina, chifres e a pecha de florzinha...Uns pequenos trechos reproduzidos pelo site UOL do livro "Mata Sete" deixaram-me espantado, pois pela primeira vez ocorreu-me pensar que Juiz também faz besteira, dessas humanamente reconhecíveis no restante da humanidade. Talvez seja a condição de “aposentado”, que sabe-se lá porque cargas d’água – talvez o hábito de ficar o tempo todo de pijama – o tenha reduzido à condição de simples e pecador humano. Pois Pedro de Morais – aqui não acresci o nobre título, pois não combina com a solenidade litúrgica que se exige nas situações costumeiramente meritíssimas – num afã quiçá humorístico, tal qual o anjo decaído de Asas do Desejo, resolve de uma vez por todas, uma vez tornado cidadão comum, experimentar a sensação de fazer molecagens. Pois, ora mirem e vejam: num dos trechos ele, o escritor e juiz, se refere-se ao Rei do Cangaço, o homem que fazia tremer pedras à simples menção de seu nome, como “...o galhudo capone” e aí posso ver a satisfação nos olhos brilhantes do magistrado, deliciando-se com coisas mundanas: o que deve ter ficado entalado na garganta magistratícia por décadas, explode com a força de um lançachamas: “além de bicha, corno”, outra atribuição inexistente nos dicionários sertanejos. “Galhudo Capone”, no entanto, esconde, ou melhor, revela a natureza e a seriedade da empreitada de Pedro Morais, uma vez fantasiado de homem comum – fantasiado, sim, pois uma vez Juiz sempre Juiz, aposentado ou não, pois as prerrogativas inerentes ao cargo e a respectiva respeitabilidade continuam intactas. “Galhudo Capone”, expressão lingüística capaz de impressionar sua audiência provinciana, é colhida nos porões do barroquismo bacharelesco de fins do século XIX e começos do XX, que sobrevive ainda por aquelas bandas, basta dar uma olhada, breve que seja, nos versos sarneyseanos.
Aproveitando e tendo como arma os modernos meios de reprodução de notas e notícias, nada melhor nem mais oportuno do que denegrir imagens e reputações de inimigos seculares. O que choca e torna a empreitada com cheiros pouco recomendáveis é o baixo nível da peça literária que, como disse atrás, deve impressionar apenas e tão somente, sua audiência provinciana a quem ele desfila seus dotes “literários” para olhos embasbacados.Contudo, queira-se ou não, hai cousas que podem escapar aos domínios mesmo de semideuses: os tempos mudam, e os costumes, e os conceitos, visões de mundo, idem. Em outros lugares, sopram ventos e algumas correntes de vento que não respeitam reputações e desejos magistratícios; os ventos sabem disso há tempos; os poetas e vates de toda parte, idem!
Correm soltas por aí rejeições por opiniões homofóbicas. Nada perdoam, seja de juizes ou homens comuns. E assim, o tiro pode sair mesmo pela culatra, pois, que se venha a impor a condição homossexual do Rei do Cangaço, eis que isso venha a torná-lo ainda mais lendário. E em vez de esculachar a reputação do homem herói dos sertões catingueiros, pode acontecer de fazer dele uma espécie de Coronel Redl, o célebre militar retratado em filme hollywoodiano, do diretor Stván Szabó e estrelado por um Klaus Maria Brandauer. Aliás, a patente ele já tem: Capitão Virgulino! Ou seja, a reputação concedida ao rei do Cangaço, seja por seus admiradores ou detratores, transcende a opinião de juizes ou ex juizes.E pode até mesmo acontecer do magistrado ser destituído de seu pedestal e se tornar verdadeiramente ex-juiz, o que equivaleria a uma ignomínia para uma classe se seres que se arvora acima da humanidade comum, quiçá da Lei, da qual foram arautos. E como desgraça pouca costuma ser bobagem, pode até acontecer de alguém sem nenhuma importancia social, que noutras épocas sequer ousaria levantar olhos para um magistrado, tenha a desfaçatez e suprema petulância de mandar um semideus achar o que fazer...