Quando criança, na zona rural de Junqueirópolis, região do Pontal do Paranapanema, tinha um amigo chamado Zé que detestava ser chamado Zé. O Zé era calado, macambúzio na maior parte do tempo, tomado por indecifrável tristeza. Mas nos seus raros momentos de altivez, o mais freqüente era o veemente protesto quando alguém se dirigia a ele tratando-o de Zé. A bem dizer, não era exatamente veemência, por conta de sua natureza pacífica; mais correto é dizer enfático: encarava o interlocutor e dizia tranqüila, mas claramente, fosse qual fosse a idade do outro: “José! Meu nome é José.” (Mencionar a idade é importante, pois aqueles eram tempos e aquele era um lugar onde a idade era algo a considerar, ninguém respondia de modo supostamente atrevido a um velho). Mas os protestos do Zé, veementes ou nem tanto, nunca funcionavam, o tratamento “José” durava um momento apenas, na frase seguinte, por descuido ou mesmo para provocar, voltava o costumeiro “Zé.” Uma curiosidade a considerar: seus pais – ‘seu’ Lino, um negro bonachão, grande contador de causos e ‘dona’ Gedalva, de fortes traços indígenas - e irmãos e irmã menores o tratavam pelo formal ‘José.’
Eu próprio, seu amigo mais chegado, o tratava creio que mesmo involuntariamente por ‘Zé’, pouco importava quantas vezes me corrigisse e sem esconder a irritação. O tratamento formal só era requerido quando era para tratar de algo sério, como um trabalho escolar ou para combinar a incursão a algum pomar das redondezas para roubar frutas: o Zé tinha uma grande habilidade em carregar várias melancias ao mesmo tempo – 4 ou 5 – com um senso de equilíbrio que eu não conseguia compreender...
Certa vez, enquanto treinávamos atirar pedras com estilingue num tronco de palmeira, ocorreu-me perguntar: ‘Zé, porque voce não gosta de ser chamado Zé?’ Sua resposta me surpreendeu por denotar um orgulho que seu aspecto extremamente pacato não levava a pensar: “José! Meu nome é José! José Galdino. ‘Zé pode ser qualquer coisa: Zé Xibiu. Zé Ruela, Zé Grilo, Zé Galo...” Compreendi e respeitei, mas o costume se impôs mais forte: no momento seguinte o tratei por ‘Zé’ e foi assim até que nos mudamos para São Paulo, capital, em meio ao êxodo rural naquele meio da década de 1970...
Vale lembrar um personagem citado pelo Zé: “Zé Galo!” Era um mulatinho de idade imprecisa, de cabelos emaranhados como palha de aço que ele alisava com ‘laquê’ ou brilhantina e era o Don Juan das redondezas: não perdia oportunidade de pedir moças em namoro e de fato tinha muitas namoradas, resultado dos muitos bailes que freqüentava. Daí provinha sua alcunha, ‘Zé Galo’, pois não podia ver mulher que se assanhava como um galo no terreiro... Tão folclórico quanto seu apelido era sua feiúra, algo improvável para um conquistador. Se existe uma figura do mundo real capaz de comparar-se com ele, seria o personagem Zé Bunitinho, do ator Jorge Loredo. Provavelmente seu segredo fosse a mania de dizer versos para as moças, que ele dizia ser de sua autoria, o que poderia ser ou não verdade... A última noticia que tive do Zé Galo, muitos anos depois de ter saído de lá, foi que se casou com a Laura, uma negra muito decidida, braba como ela só, tinha um permanente aspecto enfezado. Lembro-me dela no Grupo Escolar, o quanto era temida. Não levou para a vida nenhum trauma conseqüente de bulling, pois quem ousasse bulir com ela levava um soco nas fuças, pois ela tinha preferência por socar o nariz de quem bulisse com ela. Fico pensando o que os aproximou, Zé Galo e Laura... misteriosos são os caminhos do amor! Fato é que o casamento com a robusta e feroz negra Laura pôs fim aos tempos de conquista de Zé Galo. Contaram-me que ela não lhe dava moleza: até para comprar fumo e cachaça na venda , ela o seguia de perto...
Fiz essa longa – para um blog! – introdução para falar de outro Zé, esse um artesão, meu amigo e também cronista deste Sr-tão paulistano, o José Maria de Oliveira.
O José Maria, entretanto, ao contrário do meu amigo de infância, faz questão de ser conhecido como ‘Zé’. Aliás, entre seu vasto círculo de amigos, certamente soará estranho num primeiro momento se alguém referir-se a ele como José Maria de Oliveira; mencionar Zé, entretanto, é o reconhecimento imediato, todos sabem de quem se trata. Amigo de artistas, profundo e eloqüente conhecedor dos butecos de Sampa, não é à toa que se lhe concedida a alcunha de maior conhecedor dos “Caminhos do Peabirú”, que resistem ao tempo e permanecem vivos na Sampa de hoje do mesmo modo como existiam quando o lugar que vivemos ainda se chamava São Paulo dos Campos de Piratininga.
“Caminho do Peabirú”, é sempre bom lembrar, eram os caminhos conhecidos por poucos índios, as rotas secretas pelas quais se guiavam os indígenas que habitavam essas paragens, genéricamente chamados “tupis-guaranis.” O “Caminho do Peabirú” também foi chamado caminho do ouro, pois graças ao conhecimento dos índios das rotas seguras, as riquezas eram transportadas com segurança naqueles primeiros tempos da colonização, onde as escoltas armadas eram escassas e insuficientes e as companhias de seguro ainda não haviam se estabelecido por essas bandas... O “Caminho do Peabirú” se caracterizava pela sua extrema simplicidade: pequenos e imperceptíveis sinais colocados em precárias trilhas na então intrincada Mata Atlântica pelas quais os raros conhecedores dos códigos se guiavam. Assim sendo, creio que podemos dizer que secreto não era exatamente os caminho, mas os sinais que o caracterizavam. Um incauto perderia os sinais da trilha segura logo nos primeiros quilômetros da empreitada, cujo destino era geralmente o litoral. Outras versões da tradição dão conta que era um caminho que ligava o litoral brasileiro à Cuzco, no Perú. O significado do nome vem das palavras "pe", de pé, e "abiru", mato amassado.
mapa do caminho do Peabiru
traços do caminho do Peabirú
Pois o Zé, nome de batismo José Maria de Oliveira, é um dos maiores conhecedores da nova e intrincada selva dos antigos campos de Piratininga, nossa São Paulo. Conhece de cor e salteado os melhores butecos, onde se pode apreciar petiscos e bebidas de qualidade a preços honestos: quer saber onde se come a melhor calabreza da cidade? Fale com o Zé e ele te conduz sem perigos e alardes à lanchonete do “seu” João, ali pros lados do Ipiranga. À vista, um butiquim como tantos outros milhares, não se dá nada por ele; “seu” João é sisudo e discreto, voce pede a calabreza e espera; vem a calabreza, aparentemente como outra qualquer até a primeira mordida, quando a denominação melhor calabresa de Sampa faz jus... A Musa da Musica Brasileira, Kátya Teixeira, maior cantora brasileira que o diga e não me deixa mentir: quando aparece por lá, faz um estrago de comilança, a despensa do seu” João tem sério desfalques em poucas horas!
Quer comer o melhor Baião de Dois da cidade? Fale com o Zé e ele te conduz ao Ribinha, que nem placa tem, mas o sabor, é para gosto dos iniciados! E por aí vai. Foi, por exemplo, graças aos ensinamentos do Zé que descobri o hoje famoso Bar do Frango, do Tatau, aquele que é para poucos, onde se ouve a melhor musica da cidade e se aprecia bons petiscos, garantia de noitadas inesquecíveis: musica e sabores de primeira e companhia de gente bonita e agradável.
Falemos agora de uma atividade que o Zé exerce há muito tempo, discretamente, apenas de conhecimento dos amigos mais chegados: ele é um artesão-artista – que difere, por exemplo, do artesão industrial. O Zé é um artesão e artista por natureza, digamos assim.
Por muitos anos sua atividade sempre foi, digamos, a concretização da reflexão a respeito dos recursos naturais disponíveis no planeta terra, que hoje sabemos não serem infinitos, como se fazia à época dos primeiros tempos da Era Industrial.
A arte do Zé é fruto de um processo histórico surgido no vácuo do sistema que prioriza produção e lucro desenfreados: nasceu basicamente da experiência de recolher objetos descartados pela sociedade de consumo. Em suas andanças pelas cidades, o Zé via um objeto – cadeira, relógio de parede, caixa de madeira, disco vinil, garrafa de vidro, estampa colorida, suportes variados – e ao contrário do lixo que parecia aos olhos de todos, ele via mais que uma sobrevida, mas a possibilidade de uma nova vida transformada.
Ao contrário de outros artesãos que fazem do oficio um meio de ganhar dinheiro, o Zé construía , ou melhor, reconstruía ao dar nova vida aos objetos, mas os mesmos não se destinavam ao mercado: criava com os mesmos uma relação de afeto, permanecendo consigo, habitando e enfeitando sua casa. O valor intrínseco dos mesmos não se relacionava com o mundo das operações mercantis.
Por muitos anos a arte do Zé assim ficou, restrita aos poucos felizardos que tinham oportunidade de conhecer e apreciar: mas como o mundo dá voltas, seu atelier ficou pequeno e a Arte do Zé como que decidiu por si criar asas e sair por aí, a embelezar salas, cozinhas, varandas, alcovas mundo afora: porta-chaves, quadros, abajures, relógios, etc. foram postos em exposição e venda. Sorte nossa, pois não são produtos para serem avaliados pelas leis do mercado: compõe, é verdade, o mercado, mas não está submetido diretamente a ele, o deus mercado.
Sua obra traz a marca da autenticidade, pois preserva certos aspectos da pura individualidade do objeto, perceptível apenas nos detalhes, sutilmente manejados pelo artista. Isso é peculiar, pois bem sabemos que existe certa “industria do reciclável” que assoma a categoria de grife, algo que, convenhamos, foge do espírito pioneiro da atividade. Levar ao pé da letra a avaliação dos produtos oriundos dessas tais “grifes do reclicável”, é uma espécie de apropriação indébita do conceito. No fundo, é adquirir gato por lebre.
A arte do Zé – que foi chamada pela amiga Monica Gouvêa de “ArteZénal”, feliz e criativo jogo de palavras -, traz em si o espírito pioneiro do reaproveitamento, não sai de uma linha de montagem. O processo de maturação e realização é longo: nasce da descoberta do objeto e lentamente vai se transformando em sua mente e mãos; e traz em si a marca da incompletude: como algo que ainda tem em si algo do “estado bruto” da matéria, está à procura da perfeição e com isso busca o contínuo diálogo com o mundo que a cerca. Essa marca da individualidade, que se revela num convite a pensar se poderia ter um acabamento diferente – pois não segue o “padrão de qualidade” do produto industrializado ou feito em série – digamos que seja um estilo, pois o tempo todo parece permutar com o olhar do observador: são temporalidades e espacialidades interrelacionadas: algo que estava destinado ao imediato fim, ressurge, transformado, vibrante de vida e beleza.
O reuso ou reaproveitamento de materiais é, felizmente, uma prática generalizada em nosso país: em todas grandes e pequenas cidades proliferam feiras de artezanato com objetos de rara beleza, fruto da criatividade dos artistas, gerando renda. A Arte do Zé, a meu ver, se distingue dos demais – por isso, merece essa abordagem aqui no sertão paulistano, com a devida conivência da Editora Chefa Fernanda de Aragão y Ramirez – por justamente nos conduzir a refletir os valores do mundo que nos cerca.
Abaixo, segue a representação de algumas de suas peças: