A SINDROME DE OTO

Custo a me acostumar a correr em torno da área do Parque do Estado, chamado “Simba”, referente ao famoso Simba Safári, orgulho dos paulistanos. Seria a estranheza de correr no asfalto ao lado de uma área verde exuberante? Ou seria a estranheza de topar com outros corredores que tem o habito esquisito de não cumprimentar o outro, nem aquele rapidíssimo menear de cabeça, discreto erguer de queixo?
Corredores são seres solitários (a maioria), correr é um hábito solitário – assim como escrever – mas existe uma curiosa solidariedade, coisa comum entre aqueles e aquelas que se descobrem praticando algo comum a eles, pouco habitual com relação ao resto do mundo – rádio amador, por exemplo: ao cruzar com outro, faz parte da etiqueta a saudação. Não é nenhuma saudação em código, nem há gestos pré-determinados e específicos, como por exemplo, entre os cavaleiros medievais que ao cruzar com outro do mesmo gênero, era obrigatório erguer a viseira e mostrar-se. O cumprimento entre os corredores é um simples “olá!”, à guisa de “dar uma força” ou o mero reconhecimento de alguém com quem se tem algo em comum...
Não sei porque cargas d’água os corredores que encontro por lá passam carrancudos, indiferentes. Depois de matutar algum tempo e analisar-lhes as feições – geralmente homens pra lá de meia idade, rostos determinados e rígidos, desconfio que devem fazer parte de um seleto grupo de executivos que moram ali nas imediações. Executivos, bem o sabemos: com raras exceções, sua vida é competir; o próprio ato de correr, entrar em forma, etc., é antes de tudo uma arma, um recurso : pensando nisso, quase dá vontade de falar que não sou um competidor, há décadas deixei o esporte de competição!... Registre-se exceções. Vez ou outra há uma saudação, sendo a maior parte, as mulheres, uma curiosidade.
Mas correr naquela região remonta um curioso fato ocorrido há uns bons 30 anos. Despreocupadamente, corria na área entre o Jardim Botanico e o Zoológico quando avistei um grande buraco na cerca de arame e um extenso gramado ao lado do lago, me convidando. Aceitei o convite, não havia ninguém em torno, entrei e me dispus a dar uma volta em torno do lado e retornar a estrada em seguida. Eu sabia que não era permitido entrar, mas imaginei que se topasse cm um guarda, ele apenas me mandaria sair, o que era mesmo minha intenção... Mal percorri 100 metros quando um guarda gordo montado numa lambreta me alcançou e mandou parar e ficar quieto. Estranhei a ordem, mas cumpri:
- Mãos na cabeça. O que você está fazendo? – Bom, o treino já tinha dançado, aquele idiota me fez parar, quebrei o ritmo e quase deu vontade de responder malcriadamente que “estava dormindo”. Mas vê-lo fardado, calças dentro das botas, uma espécie de distintivo no peito, o quepe, o cassetete que ele fazia questão de segurar, lembrei-me: havíamos saído a pouco da ditadura militar e aqueles eram tempos em que um individuo portar uma farda – qualquer farda, até segurança de firma – aparecia aos olhos do vulgo com uma respeitabilidade que ia muito além das aparências. Lembro-me de uma vez estar numa lanchonete na Av. Faria Lima e uma viatura da Guarda Civil parou ao lado e os componentes, uns seis, desceram do carro de arma em punho e tomaram posição junto a porta, como estivessem preparados a uma iminente troca de tiros ou perseguindo um suspeito... ante as caras espantadas dos usuários, funcionários das empresas das redondezas, colocaram as armas no coldres e se aproximaram do balcão, não deixando de nos encarar com a natural arrogância.
diante do guarda obesíssimo de uniforme dourado, cassetete e rádio comunicador, eu estava diante de uma “otoridade” e deveria ser cuidadoso. Então, respondi:
- Estou correndo. Ou melhor, estava até o senhor me mandar parar...
- Voce invadiu uma área de segurança!
- Não invadi. Não tinha cerca e nenhuma placa dizendo ser proibido...
- ...mas voce deveria saber que não se deve invadir uma área de segurança!
- Aqui não é área de segurança, é um parque...
- Mas você é muito metido. “Eu” digo que é área de segurança!
- Então um de vocês deveria estar lá, onde não tem cerca, para evitar que as pessoas entrem.
- Não venha me dizer o que EU tenho de fazer! EU sei o meu trabalho. Mas, o que eu quero é que você responda “o que está fazendo aqui dentro”?
- Já disse que estou correndo. Vi o gramado e não vi nada demais em correr em torno do lago... - Não! Aí tem coisa! E eu quero saber!
E nesse ponto, por um instante me exasperei. E pra começar, abandonei o tratamento formal:
- Você é maluco ou o quê? Olhe pra mim? Você não é capaz de ver que sou um atleta?
- Não ofende. Não desacate! - e até considerei sua reação amena, esperava mais truculência.
- Não vê como estou vestido? Olhe meu cronômetro! Sou um corredor! Quem você pensa que eu sou?!
- Não ofende, porque se você não for maluco, eu ferro você por me desacatar.
- Se tem maluco aqui é você!
- Você deve ter fugido do Hospital de Doido e sendo assim, eu não posso te prender! Mas, se você não for louco, ta ferrado!
Então me lembrei que ali, naquela região havia realmente um Hospital Psiquiátrico, além do Parque Cientec, da USP. A situação era estapafúrdia e se naquele tempo eu já conhecesse Ítalo Calvino, o magnífico escritor italiano autor de O Barão nas Arvores, O Visconde Partido ao Meio, O Cavaleiro Inexistente e outras obras primas, poderia jurar que estaria numa de suas tramas. Mas a cara vermelha do guarda, os lábios protuberantes e brilhantes de saliva, além dos olhos alucinados me lembraram que eu deveria me livrar daquilo o mais breve possível. Era simplesmente um sujeito acometido da síndrome de “otoridade” e não adiantaria nada discutir racionalmente com ele, tentar convencê-lo a ser racional. Então, achei por bem forçá-lo a se decidir, a dar o próximo passo dentro de suas prerrogativas do zelo pela segurança do Jardim Botânico. Então, disse:
- Você não acha que se eu fosse paciente não deveria estar com outra roupa e não esta, de atleta? Bem, não podemos ficar aqui discutindo. Ou você chama a policia e me leva preso ou me libera. Nisso seu comunicador (rádio) toca e ele atende. Percebo que ele narra o meu caso. Felizmente, parece que havia alguém sensato do outro lado, pois ele desligou o aparelho e me disse: - Tá liberado!
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