O Brasil ficou mais pobre musicalmente. Desta feita, não por mais uma perda de um grande artista, que como costuma dizer Rolando Boldrin, “partiu antes do combinado.” O Brasil ficou mais pobre musicalmente por conta da partida prematura de Mauro Dias, um dos melhores críticos musicais que tivemos oportunidade conhecer através de seus textos sempre límpidos, elucidativos, sem abrir mão da emoção que cada trabalho analisado suscitava, sem jamais abrir mão da necessária objetividade. Foi um golpe para todos que conheciam seu trabalho e o admirava por causa disso. Aos 66 anos muito ainda se esperava de Mauro Dias.
Pouco se nota a presença dessa categoria, não muito claramente encaixada dentre as atividades artísticas e culturais. Porém, os críticos são importantes, diria fundamentais para a arte e cultura em geral e felizmente o Brasil teve e ainda tem alguns que devem ser considerados célebres. Desde José Veríssimo, Silvio Romero, para a literatura; Paulo Emilio Salles Gomes, Leon Cakof, Rubens Evald para o cinema; Luis Antonio Giron, Ennio Squeff, Mauro Dias, José Ramos Tinhorão para a música; Bárbara Heliodora, Décio Almeida Prado para o teatro, e outros tantos formadores de público, de uma consciência crítica capaz de elevar a arte como um dos aspectos fundamentais da existência e não mero entretenimento, descartável, a ser usufruído aos intervalos acidentais de outras atividades consideradas mais "sérias" ou "produtivas".
Atualmente, com tanta “coisa estranha” acontecendo nesse nosso mundo, o papel do crítico anda meio esmaecido, já não é a referência como foi no passado, onde o mesmo exercia de fato o importante papel formador de público e artistas e por uma razão simples: as pessoas liam o que os críticos escreviam a respeito de filmes, livros, música. Muito do meu interesse por cinema, por exemplo, veio das críticas de Rubens Evald e Leon Cakof, entre outros; aprendi a encarar a música com outros olhos e ouvidos a partir dos textos de Luis Giron, Tinhorão, Ennio Squeff e Mauro Dias. Voltando a referência do inicio do parágrafo – “coisas estranhas” – percebemos uma certa prevalência do “critico jabá”, aqueles que são pagos para comentar certos discos, seja para elogios descabidos, seja para denegrir o trabalho de determinado artista. É possível que isso sempre tenha existido, mas parece-me que hoje em dia seu uso é mais corrente. A própria formação do crítico musical parece ter mudado o foco, não mais é necessário uma excelência em cultura geral. Os meios de comunicação adaptaram certas circunstancias e para ser “critico” de musica ou cinema, basta saber manipular o uso de certas palavras-chave, combinando com a porção de “estrelinhas”, as tais cotações: não é coincidência as “críticas” serem parecidas, pois o que se analisa é um produto, sem que se considere a fundo os múltiplos aspectos humanos de quem realizou o trabalho: a análise puramente técnica e ainda por cima superficial, feita para ser lida em menos de três minutos, tem mesmo de buscar um padrão. E que sobretudo, não surpreenda. O papel de muitos críticos de hoje em dia é dizer o mesmo, o óbvio, de acordo com a embalagem que necessita ser vorazmente consumida. Um longo e cansativo texto pode não interessar a quem vai ao cinema consumir gigantescos sacos de pipoca e refrigerantes saturados de açúcar: basta a indicação “ótimo”, “regular”, “regular” ou “péssimo”; o mesmo vale para a música. Ou isso, ou os textos dirigidos, geralmente para um público supostamente mais “intelectualizado”, nas colunas de revistas semanais, revistas-catálogo de editoras ou revistas de empresas aéreas. (Porque será que às vezes me sinto como um idiota quando leio certas resenhas?)
E o Brasil ficou mais pobre musicalmente porque partiu dentre nós um daqueles que melhor entendia do assunto e também dos que mais amavam esse importante aspecto de nossa vida: a cultura musical. Mauro Dias era daqueles que ia além da crítica em si. Seu olhar era amplo. Enxergava o artista inserido neste ou naquele movimento, pressentia a intenção que o motivava. Isso fazia com que o leitor atento de seus textos conhecesse e se interessasse pela trajetória do mesmo e dessa forma, o situava na própria história, compreendia porque o trabalho era feito desta e não de outra maneira – para muitos artistas, dentre aqueles que encaram a arte como algo além do entretenimento, a profunda angustia e sofrimento que os toma nos momentos decisivos da criação não é saber a fórmula de vender mais e cativar mais mais público; o que lhes importa de verdade é transmitir a essência, a verdade de seu sentimento. Mauro era desses que parecia compreender a verdadeira motivação do criador e mestre das palavras que era, tinha o raro talento de tudo transmitir e em linguagem simples, acessível ao leigo. E assim, em movimentos sutis e envolventes, tornando leitor e artista cúmplices no delicioso jogo da Arte, transformava o artista num verdadeiro agente de transformação política, artística e social, sem jamais, entretanto, “politizar” segundo os conhecidos ditames panfletários, abundantes em passado não muito distante e ainda presente em certas camadas “jornalísticas”, matizados pelo forte verniz dos velhos ícones de esquerda (ou de centro ou de direita; isso não importa, pois a ideologia superficial e banal apenas rebaixa a grandeza artística de um trabalho).
Mauro coroava a relação bonita que mantinha com os artistas, especialmente os chamados “independentes”, ou seja, aqueles que não faziam parte das grandes gravadoras, não obstante a qualidade do trabalho, e coroava relação com textos “definitivos”, que espantavam pela simplicidade, mas que extraíam de cada um o essencial: é famosa, por exemplo, sua frase sobre a interpretação de O Ciúme, de Caetano Veloso por Consuelo de Paula: “A interpretação definitiva.” (Quem ouvir a interpretação de Consuelo no CD de Elson Fernandes sobre o Velho Chico, compreenderá porquê, pois essa canção, gravada por “n” artistas, de quase todos os gêneros, parecia ainda guardar um segredo que a moça de Pratápolis foi buscar e Mauro pressentiu como nenhum outro. Quem duvidar, que ouça a musica, disponível no youtube, e compare. Tudo estava ali, tudo estava posto, ele apenas traduziu da maneira mais simples, sem ocultar a sofisticação e sabedoria de quem conhecia o oficio de informar como poucos).
Mauro Dias morreu? Não creio. Pessoas como ele, de tamanha generosidade, são sementes angélicas que o Criador Supremo espalha pelos mundos. Ele é uma dessas figuras roseanas, que ficam encantadas, impregnadas para sempre na alma brasileira. Sua atuação na critica musical é uma semente sempre fértil, gerando bons frutos sempre que alguém buscar referência para a musica brasileira de qualidade. Nele, a critica se transmutava em obra de arte. Puro amor pela arte.
Reproduzo abaixo dois trechos de critica do Mauro, extraídos dos encartes de dois CDs: o disco de estréia do Zé Gomes e o álbum duplo, também de estréia, de Dani Lasálvia. Poderia escolher outros tantos, de muitos outros artistas maravilhosos e esquecidos pela grande mídia. Esses dois, Zé Gomes e Dani, representam tantos outros artistas maravilhosos, independentes do vil comércio da arte, entretanto, pagam um alto preço por essa liberdade. Os pequnos enxertos falam por si, prestem atenção:
“...Palavras Querem Dizer é um disco triste, mas não sombrio, que abriga xamamés e rondós, música impressionista e de extração barroca de Minas Gerais, referências nordestinas e mouras, canções dos pampas e das corredeiras matas, música profana irreverente e solenes cantos de religião. Restabelece um mapa sonoro do Brasil rústico, reconquista uma história musical de recônditos abandonados. Não é, entretanto, um disco lamentoso nem saudosista, pois o Zé Gomes aplica na composição as conquistas harmônicas do século e trata o sintetizador com a dignidade que merece todo intrumento musical...”
(reprodução parcial do texto do encarte de “Palavras Querem Dizer”, trabalho maturado ao longo de toda uma vida dedicada a musica e que ganhou corpo e forma com a Comitiva Esperança, realizada em 1985 (o disco é de 10 anos depois, 1995) ao lado de Almir Sater e Geraldo Espíndola).
“...O material aprendido, apreendido, retrabalhado ou apresentado de forma pura, não seria contivel no tempo de um único disco. Madregaia é um álbum duplo, que soma aos registros tomados diretamente das fontes, as contribuições criativas e respeitosas de Luis Perequê, Renato Braz, Edu Santana, Dercio Marques, Kátya Teixeira, Vozes Bugras, Stenio Mendes Nogueira, grupos Tarumã e tarancón, Juh Vieira, Noel Andrade, Cao Alves, Toninho Carrasqueira, Toninho Ferraguti, Zé Helder, João Bá, Juraildes da Cruz. Chico Buarque (sim, porque suas valsinhas vem tão do fundo do País quanto o trenzinho com que Villa-Lobosnos desvenda a alma), Vidal França, Amauri Falabella e outros autores contribuel com seus trabalhos que partem da cultura oral e ajudam a compor o repertório de 26 maravilhas em forma de musica. Resta falar da voz de Dani. E resta falar do encanto – do estado de eterno encantamento de Dani lasálvia. E da sonoridade impar de cada que cada abordagem imprime ao original (re)tratado. E da alma – eu que não acredito em almas – dessa mulher magnífica. Mas as palavras são frias, pois não traduzirão a emoção de ouvir Dani, de ouvir Madregaia...”
(reprodução parcial do encarte de Madregaia, o então aguardado disco de Dani, depois de longos anos de estrada ao lado de grandes mestres, cultuando e cultivando sonoridades que atravessam tempos e espaços).
Todos que amam e respeitam a verdadeira arte, seja numa sofisticada sala de concertos ou num terreiro de terra batida, devemos muito ao Mauro, que sabia exatamente como transmitir o valor e beleza que só um amor profundo pela arte é capaz de captar...