Viola & acordeon são dois instrumentos de origem européia que de tão enraizados em terras brasileiras tornaram-se parte integrante do nosso jeito de ser, entronizados nas mais profundas camadas da cultura popular, da própria “alma” brasileira. Elemento facilmente compreensível, como convém a uma cultura decididamente mestiça, de formação fundida com elementos aparentemente tão díspares – louve-se nesse sentido, o elemento existente na mitologia pré-colombiana que destinava ao estrangeiro um lugar de honra e em certos casos adoração. Característica que por um lado causou a destruição ao não combater o invasor, por outro facilitou a integração. O Brasil não teria se tornado o que é não fosse o espírito hospitaleiro que, não por acaso, ainda é das nossas características mais marcantes.
E o
país foi se construindo, a vida circulando, fluindo. As atividades de lazer, os
folguedos mais do que qualquer ação “política” ou “social” dirigida, sempre será a
mais eficiente forma de integração entre culturas tão díspares.
O que
alguém teria na ponta da língua se lhe perguntado fosse sobre algo típico da musica
brasileira de raiz? Poderíamos dar mil respostas, e todas poderiam estar certas
e uma imensa maioria citaria sem pestanejar a viola – “caipira”, “sertaneja”, “cabocla”,
“brasileira” – e o acordeon - “sanfona”, “gaita”. Em tempos de nacionalismos
tão exacerbados, com culturas humanas se digladiando entre si, é interessante
pensar que instrumentos “estrangeiros” possam de verdade ser “típicos” de um
país... Tema que vai longe, aqui mencionado apenas para pequena reflexão. Apesar
de alguns insistirem no “choque de culturas” como explicação para a guerra, o
que conta mesmo é o viés econômico, o que interessa ou não, o que é lícito ou
ilícito ao mercado. As culturas unem,
não separam.
Os ditos instrumentos, cá chegados por mãos estranhas, são inegáveis símbolos da cultura nacional. Saliente-se que não de trata meramente de transplante de um modismo estrangeiro (como tão bem definia Darci Ribeiro!), mas de um verdadeiro amalgamento, autentica transformação, mais que uma transcriação. Influenciada pelas novas cores, sabores e temperos, ganhou luz própria e vida nova, sem deixar, contudo, de manter traços comuns à sua remota origem.
A adoção da viola como instrumento “típico” não é um acaso: chamada, “caipira”, “sertaneja”, “brasileira” ou ainda “cabocla”, apesar de séculos de existência , é um instrumento em desenvolvimento. Ou talvez seria mais correto dizer que ainda não teve todos os seus recursos explorados e por isso tanto nos surpreendemos com seu uso extraordinariamente inovador de forma tão variada – vide a obra de Ivan Vilela, Adelmo Arcoverde e outros, que dela extraem recursos sinfônicos; a francesa Fabienne Magnant que a leva de volta ao universo da musica européia, enriquecida pela sua passagem terras americanas do Brasil. Ricardo Vignini, oriundo do rock introduziu a viola naquele gênero, com resultados muito interessantes.
Na história da musica tradicional (popular) brasileira a viola está sempre presente, desde o tradicional viola e violão da fase de ouro das duplas sertanejas ou no nordeste durante o reinado do “repente” , como companheira inseparável da rabeca nos impagáveis desafios.
No entanto, embora tão próximos e tão ao gosto popular, o mercado discográfico não registra muitos encontros em duo viola e acordeón. Corrigindo esse lapso, o violeiro Valdir Verona e o acordeonista Rafael De Boni lançaram não um encontro experimental, mas dois! São dois belos e surpreendentes discos, onde a viola e o acordeon proseiam faceiras revelando a velha amizade que sempre existiu!
O primeiro deles, “Encontro das Águas”, foi um abridor de caminhos, cartão de visitas das possibilidades dos instrumentos, devaneando por entre contradanças típicas da paisagem pampeana. O segundo, simplesmente chamado “Duo de Viola & Acordeon”, consolida o diálogo sonoro. E tudo acontece de maneira informal, desprentenciosa. Os temas abordados, mesmo inéditos, nos parecem conhecidos, pois remetem às nossas mais nostálgicas lembranças: os timbres, a leveza, a descontração, a pureza, facilmente reconhecíveis para quem algum dia teve contato com a cultura interiorana de qualquer parte do Brasil. Ouvindo os rapazes Valdir e Rafael, dois inconfundíveis gaúchos de autêntica cepa, temos a impressão de que eles estão na sala ou na varanda de nossa casa brincando de música.
São eles, Rafael De Boni e Valdir Verona, músicos de invejável formação, mas o que faz toda a diferença é a sensibilidade com que ambos exploram o rico universo sonoro. Os instrumentos, já por si moldáveis e predispostos à ginga ou ao deleite nostálgico, Valdir e Rafael com humildade apenas se deixam conduzir pelos mesmos: sem trejeitos, sem gingados mirabolantes; “apenas” deixam o som fluir como um rio de águas claras... Ou assim nos parece, pois por trás da simplicidade dos dois se oculta uma técnica refinada.
A obra de Valdir Verona e Rafael De Boni poderia ser uma introdução a esses dois instrumentos tão populares e tão comuns do Brasil profundo. Precisamos de mais encontros desses, num país com tantos e brilhantes sanfoneiros e violeiros. Mas o trabalho desses valentes é também uma homenagem a um aspecto cultural tão presente em nossa gente e que lentamente perde o viço, engolido pela globalização: os bailes das pequenas cidades interioranas ou comunidades rurais de hoje são equipados com potentes caixas e aparelhos que introduzem todo tipo de estranheza nos bucólicos cenários. Mas não nos desanimemos: a existência de trabalhos puros e repletos da beleza que foi preservada por séculos, é um indicio que aponta para um possível futuro! O mundo dá voltas! (Quem diria, agora em São Paulo, estão lançando discos em vinil e custam uma grana! Ainda bem que preservei grande parte dos meus, pelo menos os mais significativos! Sinal que o que é bom, fica e volta!)
Trabalhos como o que Valdir Verona e Rafael De Boni estão aí para lembrar que a cultura existe e se engana quem menospreza o espírito de uma arte que sobreviveu nas mentes e corações dos povos por tanto tempo! Embora em seus temas predomine naturalmente o gauchismo, são universais! É significativo, por exemplo, o “bordado” entre Felicidade, de Lupicinio Rodrigues, e Luar do Sertão, de Catulo da Paixão Cearense: constrói-se uma ponte entre o Nordeste e o Sul que cumpre a missão de religar, encantar e bailar, seja numa estância, num terreiro de terra batida, em volta de um fogão à lenha ou num salão nobre.
É a viva música, da pulsante alma brasileira!