Certa vez o saudoso músico gaúcho,
Zé Gomes, tido entre seus pares como imparcial rigoroso conhecedor da arte
musical, foi chamado a emitir opinião sobre um violeiro que gozava de grande
sucesso de publico e critica: era a coqueluche do momento, aquele com quem
todos queriam tocar e todos queriam
assistir, um desses fenômenos que marcam época, que tanto podem ser para sempre
consagrados como rapidamente esquecidos.
Diante do vídeo, com seu jeito
peculiar de observar, demorava mais do que o usual para expor a esperada opinião.
Certos movimentos incompreensíveis com a cabeça confundiam os interlocutores,
não se sabendo se era de aquiescência ou reprovação; passavam-se os minutos,
longos, e nada do aguardado diagnóstico: lá pelas tantas , é visível nele certa
inquietação, misturada a admiração; algo
o incomodava – quem o conhecia, sabia. Por fim, inopinadamente, num gesto de
impaciência, mas também de alívio, vaticinou:
“Mas ele
só toca!”
Um violeiro que toca. E que toca
bem, que é uma virtuose em seu instrumento; tem estilo e pleno domínio de sua
arte: o que se pode querer mais? Pergunta intrigante, mas não totalmente
estranha em se tratando da compreensão do sentido da arte e da música em
particular.
Embora não conste em nenhum
manual, quando se fala da arte autêntica e de seu valor intrínseco, a questão
fundamental não se resume a técnica, embora
a mesma seja um componente até mesmo obrigatório. A indagação intrigante é
sempre cabível aos sinceramente curiosos: afinal, qual o objetivo da arte?
Entreter, informar, desenvolver
sensibilidades? Que seja isso ou muito mais, que seja no show business ou um batuque numa roda de
amigos; sabe-se que uma singular relação se estabelece entre artista e público e
que a mesma tem componentes misteriosos, incompreensíveis. O que pode explicar
a magia que desperta e conduz a emoção,
esse elemento que permeia todas as formas de arte, erudita ou popular? Que seja
a emoção imediata ligada ao presente, ou outras, mais antigas, dispersas,
distantes no tempo e espaço, a emoção é
o guia, que nos permite transcender o ordinário comum, em geral, banal.
A Arte constrói pontes que se
ramificam e ligam os elos invisíveis da vasta memória humana; ela própria é um
caminho de dimensões indefinidas, construção atemporal, através da qual a
odisséia humana se realiza e a história se cumpre no vasto mosaico onde as
culturas humanas se expressam em suas peculiaridades e no que tem de comum, a
ALMA - o resquício divino que nos bafejou.
É na História dos povos e na Alma
que os anima que podemos, talvez, encontrar o que chamamos sentido
da vida: são dimensões simbólicas que nos induzem sempre que nos deparamos
com uma expressão de arte pura – som, imagem, palavras, etc. É nesse momento
que alcançamos o limite da técnica e o ultrapassamos; também nesse momento nos
damos conta das limitações artísticas
que apenas reproduz o que foi imposto exteriormente, e não a expressão do
conteúdo latente, que se encontra nas dobras da memória. A arte pura,
entretanto, instiga os fugazes insigths
reveladores que vem à tona quando despertados, levando-nos inevitavelmente à emoção.
Por isso, não é raro um artista
impressionar pela técnica, sem, contudo, emocionar! Talvez por isso o veterano Zé Gomes tenha
mencionado intuitivamente que o habilidoso violeiro “apena. tocava!...” (Músico 24 horas por dia, ele não se
impressionava com virtuosismos, para ele era apenas a faceta externa, que poderia
não significar nada além dos confetes brilhantes atirados aleatoriamente para
impressionar o público e em alguns casos, até mesmo ludibriá-lo. Ao artista se
requer algo mais, numa palavra, Alma!
Seu diagnóstico, pouco claro a principio, no fundo era simples: àquele
violeiro, possuidor de grande virtuose, faltava “alma”, esse elemento sutil,
etéreo, que se constrói dinamicamente a cada momento, e que se mostra em toda
sua magnitude no espaço entre o artista e seu público – pouco importa que seja
o pequeno palco de um bar ou a arena de um estádio: em todas as situações,
prevalece a linguagem da alma, a essência do diálogo público/artista).
o multinstrumentista Zé Gomes
VIOLAS E VIOLEIROS, UM UNIVERSO À
PARTE
O mundo dos violeiros é um universo
à parte, repleto de crenças, lendas, elementos mágicos. No seio das comunidades
camponesas sua figura mistura-se à atmosfera local: para o violeiro
tradicional, habitante do grande Brasil do interior (ou Brasil profundo), a
viola é mais que um instrumento, tem a dimensão de um ser, com personalidade e vontade próprias e seu comportamento pode
ser determinado pela atitude do violeiro para com ela, a viola. Um dos maiores violeiros da história, Gedeão da Viola, referia-se
ao instrumento comparando-o à “mulher amada”, devendo ser tratada com carinho
para “tocar bonito”. Por outro lado, reage
mal ao violeiro abusado que busca subjugá-la com floreios e adereços
dispensáveis; Zé Côco do Riachão, outro mítico violeiro, lhe emprestava feições
sacras, era o instrumento de fiel devoção que o acompanhava nos ofícios de folias,
procissões, reizados e demais festas religiosas. A viola está presente em todo
o Brasil, é quase um acessório de indumentária, um objeto capaz de determinar
um estilo de vida.
No país continente, a viola é mais que um símbolo cultural, em
torno da mesma se respira uma aura espiritual, umbilicalmente ligada à história
das comunidades.
Mesmo com o advento da
globalização, as muitas maneiras brasileiras de tocar viola estão longe de uma
uniformização, cada lugar ou região tem sua peculiaridade. No estado de São Paulo, por exemplo, a viola tocada no litoral é mais alegre do que
sua similar interiorana, onde é mais melancólica, dolente, triste até (seria a
solidão do caipira, como é comum
chamar o camponês do interior, ao contrário do caiçara do litoral, mais gregário e naturalmente festeiro?). De cada estilo ou gênero, tanto no litoral
quanto no interior, sobejam as inúmeras variantes: o catira, com sua batida característica, em dupla e junto ao grupo de
dançarinos que acompanha com palmas e sapateados; atenção para o cururu, o pagode, consagrados por Tião Carreiro. E a viola nordestina, cujos trinados induz muito naturalmente à
narração de sagas e epopéias, com seu aspecto solene e reflexivo? E por aí vai:
o jeito de tocar o instrumento, seu timbre, sua afinação, sua cor, sua
personalidade conta a história de um povo e sua região.
A VIOLEIRA FRANCESA FABIENNE MAGNANT
Essa pequena reflexão sobre a
viola e o mundo dos violeiros ocorreu-me ante o espanto que me tomou ao ver a
francesa Fabienne Magnant tocar viola. À primeira vista, algo insólito, quase
um exotismo. Seria uma jogada de marketing? Ou o que chamavam viola caipira seria outro instrumento,
assim denominado? Mas não, era mesmo a nossa violinha, chamada caipira ou brasileira. Mas, reparando
melhor, também era outra viola: estava
lá o mesmo timbre, mas com outros recursos, explorando sonoridades até então desconhecidas,
ou pouco comuns.
A figura de Fabienne empunhando a
viola e a tratando com singular familiaridade, lembra uma cigana, ao trafegar
com tranqüila desenvoltura entre o intrincado mundo das cordas dedilhadas: seus
dois últimos discos são verdadeiros portais de segredos subitamente revelados, vislumbres
de três mundos distintos, distantes e complementares entre si: o nordeste
brasileiro representado pela viola
caipira, o mundo clássico europeu através do violão “erudito” e a Espanha
mourisca com a guitarra flamenga. Atemo-nos neste breve texto à viola caipira, embora os dois outros instrumentos
não sejam deixados de lado. Afinal, formam uma Trindade (não por acaso, o
último CD muito apropriadamente se chama La
Trinidad).
A viola caipira que tanto lhe chamou a atenção, sua descoberta na verdade é uma redescoberta do instrumento europeu de
remotas origens árabes que deve ter chegado ao Brasil com os primeiros
colonizadores, por fins do século XVII, inicio do XVIII.
VIOLEIRA?
Fabienne se apresenta nos palcos
do mundo como violonista e violeira. Violeiros,
assim denominados, só existem no Brasil e em Portugal, e com conotações
diferentes: no Brasil, viola e violeiro se
inserem num espaço sócio-cultural muito amplo, que se confunde com a própria identidade;
na terrinha (como carinhosamente os
brasileiros chamam Portugal), é mais um
qualitativo poético, além de assim ser chamado o construtor do instrumento.
Nos anúncios e informes
destinados ao público europeu, a grafia tem uma leve modificação, a colocação
de um trema (¨) no segundo ‘i’, (caipïra). Fabienne violeira
leva ao revela ao mundo um importante aspecto de nossa cultura, como
estabelece um divisor de águas: empunhando a viola caipïra, faz com que a mesma ganhe uma inesperada dupla
cidadania, passando a ser conhecida pelo mundo a “viola caipira do Brasil” e assim deve constar nos compêndios e
dicionários musicais que se escreverem de aqui por diante na Europa e no resto
do mundo: deixa, aos poucos, de ser um instrumento desconhecido e exótico. A
viola, finalmente, se insere na categoria dos cordofones dedilhados, com status elevado ao mesmo nível da
guitarra portuguesa ou do bandolim. Um salto e tanto para um instrumento que até
pouquíssimas décadas atrás estava restrito ao nicho de seus praticantes e de um
público especifico, apesar de ser importante ressaltar que a mesma nunca foi
uma desconhecida no mundo da música: em 1970 Bach foi gravado com arranjos para
viola brasileira, a partir de transcrições para violino por Theodoro Nogueira,
e o executante não foi um violeiro e
sim o violonista clássico Geraldo Ribeiro (nesse disco raríssimo tem um
importante artigo escrito por Theodoro: “Anotações Para Um Estudo Sobre a
Viola: Origem do Instrumento e Sua Difusão no Brasil”.
A novidade empreendida por
Fabienne Magnant é por sua inserção ser “consolidada”, pois a viola caipïra passa a fazer faz parte do
seu repertório e nos concertos divide igual espaço com o violão clássico e a
guitarra flamenga. Ainda vai longe, esse trio!
A peculiaridade é uma violonista
clássica apresentar-se como violeira,
fato em si, extraordinário, merecedor de toda a atenção, seja por parte dos
estudiosos e do público. Seu grande mérito é não somente ser uma violeira habilidosa e virtuosística; ela
conseguiu captar, incorporar em si a “alma” que anima não apenas o instrumento,
mas a atmosfera em torno do mesmo: ela mergulhou a fundo no universo da viola e
pressentiu sua importância ao longo de sua trajetória. Seu resgate não é de nenhum
estilo ou gênero; seu resgate é o do papel
que a viola (ou qualquer outro nome que tenha tido no passado) teve (tem)
na vida das comunidades, seja sob a forma de entretenimento descontraído ou ofício
religioso, seja na forma utilitária ou puramente estética.
A presença da violeira francesa
surge num momento bastante profícuo, quando outros músicos (re)descobrem outras
finalidades puramente musicais.
Seria a profissionalização do
músico a principal razão? O estudo e a especialização certamente influenciam,
mas não é tudo: o fator principal que se revela é que a viola, apesar de sua
longa trajetória, é um instrumento ainda em desenvolvimento – ou, que ainda não
foi utilizada em todo o seu potencial. Alguns trabalhos recentes mostram a
riqueza e exuberância e especialmente, sua extrema flexibilidade no diálogo com
outros instrumentos e gêneros, experiências que exploram desde o rock à musica
erudita - vide os trabalhos das duplas Valdir
Verona e Rafael De Boni; Toninho Ferraguti e Neymar Dias; os trabalhos solos de
Ivan Vilela, Adelmo Arcoverde, Jaime Alem, Ricardo Vignini e Zé Helder, etc. Sua
adaptabilidade e versatilidade surpreende e encanta: pode ser executada por um
roceiro solitário no terreiro de seu ranchinho nos cafundós do interior do
Brasil ou numa sala de concerto; seja como solista, em duo ou acompanhante, ou
ainda acompanhando grupos, como a “Orquestra Popular de Câmara”, com o violeiro
Paulo Freire. Até na música experimental, com a própria Fabienne com peças de
Phillip Glass, experiência essa disponível apenas no Youtube, para os curiosos. Muita atenção para suas composições clássicas especialmente para viola caipira, ponto de partida
pioneiro, pois é a primeira vez que ocorre fora de terras brasileiras: a viola caipïra se torna universal e a ponte possível entre o arcaico e o moderno.
A VIOLA CAIPÏRA, ária
Até meados da década de 1980, a
viola caipira, mesmo tendo entre seus
praticantes reconhecidos e afamados mestres, não gozava do prestígio hoje
auferido. Era um acanhado instrumento, coisa de caipira, então um termo pejorativo. Houve um súbito interesse dos
jovens quando alguns violeiros se apresentaram na televisão em programas de
repercussão nacional como o Som Brasil, da Rede Globo com Rolando Boldrin e
Viola Minha Viola, da TV Cultura, primeiro com Moraes Sarmento, posteriormente
com Inesita Barroso. Músicos com formação erudita foram atraídos por sua
sonoridade (Renato Andrade foi dos primeiros). Para encurtar a história, hoje
em dia é ensinada em universidades e grandes conservatórios brasileiros. Livros
e teses tem-se escrito sobre a viola – vide o texto de Saulo Alves, “O Processo
de Escolarização da Viola Caipira”, acadêmico uspiano, cantor, compositor e violeiro.
Os puristas não precisam ficar
enciumados: Fabienne não se “apropriou” e levou; sua entrada em cena acrescenta
e não reduz ao recolocar o instrumento no lugar de honra de onde nunca deveria
ter saído. Aos poucos felizardos que tiveram a oportunidade de conhecer seu
trabalho (seus CDs não são, ainda, distribuídos no Brasil) ela mostra capacidades prodigiosas da viola que nos eram
desconhecidos. Fabienne incorporou, à sua maneira, o espírito da viola, o que a
mesma tem de profano e sagrado. Antes de prosseguir, um aviso se faz
necessário: Fabienne não toca modas, nem
qualquer outro gênero brasileiro, não esperem dela os conhecidos pinicados aos quais estamos acostumados.
Em vez de repetir ou imitar os trejeitos brasileiros, ela nos mostra outros
mundos, desconhecidos, e aí reside o encanto.
É salutar e muito bonito ver o
que ela faz da viola brasileira, a viola caipïra,
com trema no segundo i: ao
introduzi-la num cenário contemporâneo, equivocadamente chamado pós moderno, na
verdade ela está resgatando para os palcos europeus e do mundo a ancestralidade
do instrumento e precisamente na característica que numa época distante por lá
deve ter sido predominante. Um ancestral da viola (alaúde árabe de 5 cordas???)
pode ter testemunhado uma então improvável passagem de um mundo tribal-nômade
dos desertos para os burgos e futuras cidades ao longo do mediterrâneo.
A atual viola caipira tem longa
linhagem, que se perde no tempo, e sua versatilidade não é de hoje: sua chegada
mesma ao Brasil pelas mãos dos colonizadores e a longa adaptação aos folguedos
populares, amalgamando as inúmeras raças do país mestiço, é a primeira grande
evidência. O violeiro paulista, Fernando Deghi, talentoso músico e estudioso do
instrumento e do seu universo dos violeiros, através de seus discos e concertos
nos dá vislumbres do papel social e até espiritual da viola caipira, cujos acordes parecem viajar ao sabor de folhas ao
vento (não por acaso, o titulo de uma de suas composições, presente no CD
Violeiro Andante, “Hojas al Viento”).
Da viola e seus mistério, até
onde é possível rastrear suas origens, acreditamos que a mesma faz parte da
evolução da música e dos instrumentos em geral: por um certo tempo permaneceu
reclusa nos sertões do Brasil até que, cansada de tanta solidão, resolveu de
novo dar as caras.
No Brasil seu enraizamento é mais
forte, está impregnado no coração, é algo que foge ao padrão estético ou do entretenimento.
Está na alma popular e também cumpre um papel social de agregação. Como talvez
tenha sido a vihuela espanhola em
tempos idos, o alaúde em seus
diversos formatos, a guitarra barroca, a tiorba, a cítara, a guitarra romântica, etc... No Mato
Grosso, mais precisamente na região do Pantanal, ao longo dos séculos
permaneceu intocada a viola-de-cocho, esta
sim, instrumento rústico de notória origem popular e que foi (re)descoberta
pelo Zé Gomes, de quem falei na abertura desse texto. Mas aqui entraríamos já
noutra(s) história(s)...
OS TRES MUNDOS DE FABIENNE, andante alegro
De formação clássica – estudou no
Conservatoire Superieur de Musique de
Paris onde se formou em 1991 - Fabienne Magnant fez várias viagens ao Brasil,
tendo estudado e trabalhado com Guerra Peixe e Baden Powel, entre outros. Dessa
primeira experiência nasceu seu primeiro disco, “Memóire Vivante Brésil”, (1995, esgotado). Na segunda temporada
brasileira, 1999, viajou ao nordeste (Salvador, Recife), quando entrou em contato
com a viola caipira e de volta ao Rio de Janeiro, adquiriu um exemplar na
famosa loja Do Souto, uma referência do ramo.
No Brasil não perdeu tempo e o contato
com a musica dos mestres antigos e atuais, de Garoto a Marco Pereira, fez dela
uma brasileira honorária: compreendeu como poucos a genialidade de um Garoto,
que deveria ser popular no nosso país e não conhecido apenas de uns poucos
iniciados; captou o colorido vibrante e alegre de um Marco Pereira – sua
interpretação de “Bate Côxa” é das coisas
mais comoventes que já ouvi: tudo está ali, a alegria, a sensualidade inocente,
o ritmo percussivo que parece brotar do coração. Sob seus dedos, as cordas
mestiças brasileiras encontraram ressonância, incorporando o jeito brasileiro, uma escola que mistura
dinamicamente vários estilos e escolas de variadas partes do mundo: mesmo em
suas próprias composições ali sentimos a presença brasileira como na deliciosa
“Clin d’oeil” (difícil acreditar que
uma francesa a tenha composto!) ou na enigmática “Pollen”, que poderia ser um “romance” armorial brasileiro. As
faixas ao longo dos CDs são desnorteantes pela surpresa gerada, como na faixa Symphorythmes, onde não sabemos o que
são ecos caribenhos ou samba – ou as duas coisas deliciosamente misturadas! O
delicado Baião Sans Nom é todo
estruturado como um tipico e natural baião dançante, mas ao final, uns curiosos
efeitos sonoros parecem aos ouvidos brasileiros como fintas e negaceios,
imprevisíveis, onde se tenta descobrir, em vão, onde vai dar, como se fosse uma
jogada de Garrincha, a alegria do povo! Coisas
de feiticeira, coisa de cigana!
Como se fosse num exercício de
prestidigitação, Fabienne Magnant viaja e nos leva junto em suas explorações
musicais. Tece cuidadosamente a mistura de intensidade e moderação, firmeza e delicadeza, as passagens entre o classicismo,
os gingados afros e as danzas mouriscas.
Os instrumentos que são utilizados como se fossem naves, não o são de forma
superficial ou gratuita: verdadeiramente, ela incorpora de cada um deles a
essência, o que cada um tem de peculiar, de singular. Seu Cd produzido logo na
sequencia do seu contato com a viola caipira, Le Sens des Senses, é um vibrante e vivo quadro dos três mundos
sobre os quais é Rainha. O texto do produtor e parceiro de palco, o
percussionista François Kokelaere é preciso: “...ela nos faz descobrir um mundo musical que só ela conhece. Nos dá a
chave de um segredo bem guardado.” Assim é Fabienne Magnant, talento raro e
misterioso contido em sua alma cigana (é neta de ciganos italianos e franceses).
LENDAS E MITOS: Intermezzo breve brevíssimo
(Do Caipira e do Blues)
...as lendas que cercam o mundo dos violeiros possuem algo das
correlatas que envolvem os bluseiros tradicionais do Mississipi: as histórias
de “pacto” com o diabo, a tristeza e melancolia, a virtuose instrumental,
estranha até para os próprios protagonistas, sempre dispostos a encontrar
explicações sobrenaturais. A que se deve fundamentalmente tais características,
que beiram a ingenuidade e o misticismo? A origem rural é uma explicação plausível,
mas insuficiente, pois tais ocorrem em determinadas regiões e atingem
determinados grupos sociais. Clássicos do cancioneiro caipira como “Chico
Mineiro”, “Cabocla Tereza”, “Boi Soberano” são pródigas de poesia e violência
intrínseca. Há algo mais que uma ideologia ou a defesa de um modo de vida : há o
meio social com suas histórias, as crenças produzidas sob o isolamento.
Se compararmos à melancolia nostálgica do blues, há certa relação com as
trágicas modas de viola, as histórias de vinganças amorosas. Mas a comparação
cessa por aí, seu efeito é meramente simbólico ao relacionar imaginários de
mundos de origem rural com suas respectivas crenças e costumes. Não há como
auferir maiores aprofundamentos, relacionando o sofrimento nostálgico da África
natal à saudade do português degredado – ambos separados para sempre de seu
torrão natal – pois, a viola caipira e o blues, não obstante alguns aspectos em
comum (histórias de pacto com o demônio, amores trágicos, etc.), num dado
momento distinguem-se claramente: a viola chamada carrega em seu bojo um forte
conteúdo do mundo rural europeu e medievo, e também ecos de sagas orientais;
por sua vez, a ancestralidade bluseira remete aos campos e savanas das aldeias
africanas. Outro fator a marcar diferença do universo da viola caipira do violão
bluseiro é sua presença nos rituais religiosos, nos reizados, folias,
quermesses, cantos de louvação, enquanto o correlato do blues são os tambores, ou
instrumentos de cordas de arco, como violinos ou mesmo acordeons ou os simples
vocais nos cantos religiosos, os spirituals.
Lembrando a relação estreita que na viola junta os extremos
sagrado/profano, atenção para a íntegra da peça operística de Elomar Figueira
de Melo, “O Auto da Catingueira”, notadamente no trecho “Das Violas da Morte”,
onde um singelo e alegre Desafio, gênero típico nordestino, descamba para a
violência e as vias de fato.
VISITA À ESPANHA
Depois de sua experiência caipira, a curiosidade de Fabienne a põe
em contato com o violão flamengo, na Andaluzia: nascia La Trinidad, seu último disco, por ora. Considero que Sens des Sens e La Trinidad, são trabalhos que se relacionam, interpenetram
musicalidades, ora com delicadezas de vôos suaves, ora a sensualidade delicada e
pungente, ora os vibrantes e vigorosos passos de danza; alegria, pureza, sensualidades, cores suaves e fortes, assim
é o percurso em sua navearte planetária,
vôo rasante por três mundos: o nordeste brasileiro, a Espanha mourisca, a
Europa clássica.
Os dois CDs, Sens des Sens e La Trinidad, se
estruturam em formas de percepção em nossos ouvidos que, como foi mencionado
desde o inicio destas poucas linhas, ultrapassam a técnica, aqui tornada mero
acessório (se podemos chamar assim!), pois em cada peça, seu mergulho é
vertical, alcança profundezas onde só a Alma pode chegar: vai direto no coração!
E nas terras onde habitam a alma e o coração, é mundo além de toda a técnica:
por lá, não se admite o artista que domina
o instrumento, mas que o conquista com mimos e carinhos...
VIAJANDO COM FABIENNE, finalle grandioso e dulcíssimo!
A música de Fabienne Magnant é um
convite que às primeiras notas um apelo magnético nos atrai irresistivelmente e
então sentimos um sopro vigoroso de novos ares no mundo: em tempos de globalização,
quando existe a possibilidade de uniformização de tendências das atividades
humanas – a arte inclusa – ela propõe um contraponto estabelecendo pontos de
equilíbrio; sugere convivência harmoniosa entre culturas tão distintas. Percebemos
em seu toque ecos de antiqüíssimos sons, quando caravanas tribais que tinham
como patriarcas Jacob e Ismael e se encontravam ao longo do Mediterrâneo e
fomentavam entendimentos que pareciam ser para sempre. Como um filme em flasheback, suas notas igualmente evocam
imagens de salões, de desertos, portos, oásis, de terreiros de terra batida, de
alegres reuniões madrugadeiras. Ao ouvi-la, reconhecemos algo comum e familiar
nos acordes que por tanto tempo ficaram adormecidos... até serem despertados
por seus dedos mágicos e novamente ganharem vida.
A francesa tímida de ares
galegos, com seu doce sorriso nos a induz a viajar; foi lhe concedido pelos
deuses o dom de alcançar as origens ignotas de muitos mundos e ao fazê-lo,
concatena e religa o passado ao presente, e (quiçá!) aponta o futuro.
Fabienne é fonte receptora e foco
emissor de poderosas forças: ela habita um castelo sendo ela própria morada da
Sensibilidade. No seu Castelo, fez do violão seu Rei e da viola sua Rainha,
como diz François Kokelaere no texto de apresentação em Le Sens des Sens. As vigorosas danzas
ao som de pés no chão e palmas, a
sensualidade, a dolência dos romances, a solenidade das epopéias líricas revelam
mundos de cores, sabores e saberes que fazem vibrar nossas almas renovadas após
a audição de sua poderosa e doce música...
DISCOGRAFIA:
- Memóire Vivante du Brèsil, 1995, (esgotado, breve será relançado)
- Canto Instrumental, 1998, duo com Paul Mindy, (esgotado)
- Le Sens dês Sens, 2003 (distribuído por Buda Musique)
- La Trinidad, 2010 (distribuído por Buda Musique)