DO MARANHÃO PARA O MUNDO: PAPETE



Uma indestrutível Bandeira de Aço tremula no ponto mais alto do panteão musical brasileiro. E por lá brilhará para sempre, fazendo parte da imensa constelação de nossas maiores estrelas. Junta-se aos  conterrâneos João do Vale e Irene Portela, a Zé Gomes, a Dércio Marques, Vinicius de Moraes, Cauby, Vila-Lobos, aos Gonzaga pai e filho, a Tom Jobim, entre outros. Nos deixou cedo, a 26 de Maio de 2016, aos incríveis 68 anos, pois Papete tinha o entusiasmo e a curiosidade de um adolescente. Seus discos de estúdio conservavam frescor, leveza, informalidade, como se fosse um show ao vivo.


            “Boa noite meu povo
            Que veio aqui me ver
            Com essa brincadeira
            Trazendo grande prazer

            Salve grandes e pequenos
            Este é o meu dever
            Sair pra cantar boi
            Bonito pro povo ver”
            (trecho de Urrou do Boi, Toada de Coxinho do Boi de Pindaré)

            Enquanto esteve entre nós, foi um incansável lutador, que o jeito menino não ocultava: quando o assunto era cultura brasileira seus olhos brilhavam. Para ele, vida e arte caminhavam juntas, uma se inseria na outra. As batidas do coração de sua filha Manuela, gravadas quando ela ainda habitava o ventre materno e inseridas no final de uma canção de um de seus discos, revelam seu compromisso, o afinco e a leveza, arte e vida, entrelaçadas.
O foco principal de seu interesse sempre foi o universo de seu querido estado natal, Maranhão, o tão maltratado Maranhão, economicamente corroído por uma sequência trágica de governantes inescrupulosos, não obstante possuir riquezas inestimáveis. Lembro-me de certa vez ter lido uma declaração sua onde dizia com todas as letras que o Maranhão era o estado mais musical do Brasil.


Papete sabia das coisas e ao dizer isso, não estava longe da verdade: não foi uma bravata, nem qualquer intenção de denotar superioridade acendendo rivalidade entre irmãos: Papete tinha a alma leve e simples de homem do povo, de cujo seio jamais se afastou, apesar de possuir talento para ser uma estrela internacional. Mas ele (bem como seu conterrâneo Chico Maranhão) sempre quis ficar e se entende porque: uma rápida passada d’olhos pela imensa quantidade de ritmos, de danças, talentos, tudo temperado por um manancial multicor, mostra porquê: o Maranhão é um sol, uma poderosa usina de energia, um coração cujo pulsar cintila Brasil afora. Não é por acaso a terra de dona Irene Portela, Chico Maranhão, João do Vale, além do próprio Papete.

Embora os temas maranhenses ocupem a quase totalidade de sua obra, sempre foi um atento observador da cultura de todo o país e por toda sua obra se espalham temas típicos de várias regiões do país: Luiz Gonzaga (O Xote das meninas), Renato Teixeira (Vira (No Meu Quintal), Paulo Ruschel (Cancha Reta) são exemplos imediatos, além da longa parceria com Toquinho e inúmeras contribuições com Diana Pequeno, Almir Sater, Zé Gomes, etc.


Nascido José Ribamar Vianna, em Bacabal a 08/11/1947, era músico em tempo integral conforme concerne aos gênios. São antológicos os textos escritos sobre ele pelo produtor Marcus Pereira, impressionado com suas performances. Pela gravadora de Marcus, conhecido por ter feito um dos melhores mapeamentos musicais do Brasil - 16 belos e importantes discos, 4 para cada região do pais: Musica Popular do Nordeste, Centro-oeste, Sul e Sudeste -  Papete lançaria seus primeiros discos, além de atuar como pesquisador para a série ”Musica Popular.” O reconhecimento de seu trabalho ultrapassou fronteiras sendo ainda muito jovem. Foi eleito por três vezes como um dos 3 melhores percussionistas do mundo em 1982, 1984 e 1987, no Montreux Jazz Festival, na Suíça.

Papete foi protagonista de um Era de Ouro da Musica Popular Brasileira, entre o final dos anos 1970 e 1990, quando houve uma importante revalorização da musica de caráter regional e importantes artistas que não orbitavam em torno dos “caciques” da MPB puderam lançar seus trabalhos e com isso fizeram histórias, produzindo álbuns que se tornaram raridades.  “Bandeira de Aço” e o famoso encarte que o acompanhava é um exemplo clássico. Eu tenho o LP, em bom estado, mas sem o encarte. Os amantes do vinil hão de entender o que quero dizer: certos discos fazem sentido quando você além de ouvir, pode ver ou tocar com as mãos, como é o caso do “Milagre dos Peixes”, do Milton, onde cada faixa ou grupo de faixas correspondia a uma cor. As cores do encarte, portanto, funcionavam como ‘código’, o “Milagre” em particular, pois as letras haviam sido censuradas e só a parte instrumental veio a publico. “Bandeira de Aço” foi relançado em CD, porém o foi com tremendo descuido: uma capinha mixuruca, onde só consta o titulo das musicas. Um erro irreparável, falta de respeito para com público e artista.


São muitos os seus discos antológicos. Bandeira de Aço deve ser o mais representativo, pois se trata de uma síntese da cultura popular que anima desde a capital até os mais distantes rincões, da praia ao sertão. A fusão com ritmos caribenhos dá um tempero especial. E por falar em disco antológico, como não lembrar de “Planador” e sua magnífica parceria com Almir Sater em “Luzeiro”? Ou o melhor solo de rabeca,  por Zé Gomes, na faixa “Pastorinha”?

Bela Mocidade é outro belo disco, dentre tantos. .É um trabalho que fala do Maranhão como um todo, onde cabe bem a expressão “tudojuntoemisturado”: cidade, interior, praia, passado, presente, pinceladas fortes de reggae, memórias afetivas.


Foram 18 albuns  ao longo de aproximadamente 40 anos de carreira, o que dá a média de quase 1 disco a cada dois anos, numa impressionante regularidade, sempre tendo o Maranhão como tema principal, porém, sempre voltado, sempre antenado com a cultura brasileira como um todo: a arte popular, de todos os recantos, manancial inesgotável – diferente de outros ritmos, melhor dizendo de outras modas que mesmo tendo grande valor, com o passar de alguns anos, cansa e se esgota por si.

Papete, ou melhor, o pesquisador de cultura popular José Ribamar Vianna, idealizou, coordenou e publicou no ano passado o livro “Os Senhores cantadores, amos e poetas do bumba meu boi do Maranhão”, cujo titulo altamente sugestivo fala por si.


UMA CURIOSIDADE: Enquanto finalizava esse texto ouvindo um de seus LPs na minha simpática vitrola, deparei-me com um texto datilografado dentro da capa do disco, um breve comentário sobre ele. Quem o escreveu? Não sei. Pode ter sido eu mesmo muito tempo atrás, mas de fato creio que não, tem particularidades nas quais não me reconheço. Mas é um comentário tão espontâneo e sincero que acho importante reproduzi-lo aqui, na integra. A hipótese mais crível é que o antigo dono ou dona  do LP, apos ouví-lo teve um rompante poético e descarregou no papel tudo o que sentiu. Verdade é que ficou lindo, muito bom, pois é a cara do Papete e acredito que ele certamente gostaria de saber o que seu trabalho inspirava nas pessoas.
Um texto de puro sentimento e verdade. Assim, com o mesmo ímpeto que o autor deve ter escrito, tomei a decisão de aqui reproduzir, nesse singelo texto que tem somente a intenção de mencionar a grande importância de Papete para a musica e para a cultura brasileira de um modo geral.
Eis o texto (se alguém identificar o autor, agradeço a informação):


“PAPETE

Papete arrasta voce para um universo de sons incomuns, luminosos ou sombrios, que lembram uma entrada pelos matos, um avanço em que o sol brinca de esconde-esconde, um serpentear de um riacho e, de repente, uma cachoeira.

Manifesta sua força quando toca uma singela modinha, nas beira da calçada, antes que a lua apareça ou quando participa da “folia de reis”.

Fala, de perto a parcela de sangue selvagem de cada um, provoca um chacoalhar de sentimentos, surpreende voce, confunde um pouco, depois lhe permite um enriquecimento da consciência. Pode ser uma “brincadeira” bastante séria: “Dou um doce a quem souber”...reserve um tempo para Papete, ouça-o várias vezes e voce saberá.” (autor desconhecido)



Papete se foi. Mas o seu estandarte está impresso a fogo vivo na Bandeira de Aço que tremula elegante e soberana em lugar nobre: o coração de cada brasileiro.

“Na ilha de São Luis tem um boizinho chamado Barrica, que no mês de junho gostam de brincar à luz das fogueiras na terra e  das estrelas no céu.  Barrica emociona: traz a esperança de que nossa alegria há de durar para sempre, como para sempre há de durar o valor de nossa  gente”
(introdução a Rompendo Fogo)



DISCOGRAFIA:
Berimbau e percussão (Discos Marcus Pereira)  1975)
Bandeira de aço (Discos Marcus Pereira)  1978)
Água de Coco (1980/1979)
Planador (1982)
Papete (1987)
Rompendo fogo (1989)
Bela Mocidade (1991)
Voz dos arvoredos (1992)
Laço de Fita (1994)
Música Popular Maranhense) (1995)
PAPETE (1996)
O melhor de Papete (1997)
Tambô (1999)
Era uma vez... (2004)
Jambo (2006)
Aprendiz de cantador (2008)
Estrada da Vitoria ( 2010)
Senhor José (2013)


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