O cantor, compositor, violonista e produtor Mario Gil é uma
referência para boa parte da atual musica brasileira, mas pode andar
tranquilamente pelas ruas de qualquer
cidade brasileira sem muitas possibilidades
de ser abordado. É para esse público que o desconhece que reservo algumas palavras
introdutórias a seguir: ele faz parte de um grupo de artistas surgidos no lastro
do “Clube da Esquina” – que deve ter sido o último grande movimento da MPB pós
Bossa Nova e Tropicália .
Esses jovens artistas
talentosos, urbanos na maioria surgiram num ambiente que podemos chamar “circuito universitário”, embora não
considere a expressão correta. Embora muitos tenham realmente surgidos nesse
meio, deve ser mais uma tentativa de rotular o movimento para de algum modo
viabilizá-lo comercialmente. Mas o fato é que eles não se enquadram em
nenhum rótulo, exceto, talvez, independentes. (A música independente,
como sabemos, é uma modalidade comercial, onde os artistas produzem seus
trabalhos à margem dos grandes estúdios, por conta própria ou com ajuda de
amigos. Consolidou-se aos poucos, com mercado e público específicos).
Esse grupo, bastante abrangente, sem orientação (não houve
nenhum marco inicial, nenhum manifesto, etc) e lugar definidos, surge num momento de certo descrédito da MPB, quando muitos consideravam a nossa
música esgotada, saturada, envelhecida e era comum ouvir dizer que nada
surgiria de importante depois de Caetano, Chico, Gal, Bethânia, Milton Nascimento e outros. As
pessoas suspiravam tristemente e diziam que tinham sido os últimos, que a musica
brasileira tinha acabado e qualquer novidade não passava de cópia, imitação
barata...
Não era bem assim, como se provou depois. Um tanto
timidamente eles surgem, sem alarde,
discretos, sem se importar em parecer aprendizes. Nos pequenos espaços onde se
apresentavam, geralmente bares, misturavam-se com a platéia quando terminavam
seus números e ali mesmo colhiam a impressão de seu trabalho. E para o público também
era algo novo, poder conviver com o artista de carne e osso, sem o tumulto que
cerca as grandes estrelas. Enfim, algo novo
se desenhava no cenário, público e artista construíam juntos novas possibilidades artísticas – de algum
modo, isso continua, um certo clima de cumplicidade envolve esse ambiente de
proximidade público artista, como podemos observar no Projeto Dandô, idealizado
por Katya Teixeira, mas aí éoutra história, que foge ao nosso tema de agora...
Voltando à história dos jovens que remodelaram a nova música
brasileira, a partir dos chamados espaços alternativos: uma grande leva de
artistas surgia assim, e devido a qualidade de seus trabalhos, aos poucos saem
de seus ‘guetos’ e se espalham pelos teatros, palcos maiores. Portadores de uma
sólida tecnica duramente elaborada, não demoram para angariar um público fiel.
Em outras palavras: sim, havia, ainda, uma fatia de mercado sensível e sedenta
de música e artistas de qualidade para
criar, desenvolver e continuar nossa arte musical.
Fazem parte dessa leva que lentamente se consolidou por
conta da alta qualidade artistas como
Monica Salmaso, Renato Braz, Consuelo de Paula, Mário Gil, só para citar alguns,
um sem número de instrumentistas geniais. E nos últimos 15 ou 20 anos cada um
deles seguiu sua trilha, em projetos individuais, eventualmente se encontrando,
dividindo palco, colaborando entre si.
A influência de Dori Caymmi entre eles é perceptível, em
alguns casos diretamente, como a participação em alguns trabalhos de Renato
Braz, noutros nem tanto: mas se percebe a presença do mestre na busca de um padrão
estético diferenciado, arranjos sofisticados , grande avidez na busca de uma
técnica rigorosa que coloca em destaque a
criatividade que nunca faltou ao músico brasileiro. Aqui, um breve intermezzo e apenas para citar o óbvio:
música é algo que o brasileiro sabe fazer, porque gosta. Desde criança se
acostuma e assim como o futebol, é uma forma de lazer acessível. Eis algo que as autoridades
educacionais devem levar em conta, o ensino de música nas escolas, que deveria
necessariamente fazer parte dos currículos, não exatamente para formar
artistas, mas para formar cidadãos, indivíduos capazes de reconhecer e
distinguir a musica boa da ruim.
A ousadia desses jovens “filhos e filhas”
da turma do “Clube da Esquina” (filhos e filhas num sentido cronológico e não
exatamente genealógico) tem lógica e história: está no DNA do músico brasileiro
e remonta a Zequinha de Abreu, Chiquinha Gonzaga, Villa-Lobos, João Pernambuco, e
outros: virtuoses mestres e mestras, cada
qual em seu tempo e lugar e que tiveram como
mérito principal o aprofundamento da brasilidade, a identidade de um país que
carecia de uma legitimação para deixar de importar o que se produzia mundo
afora, principalmente a música americana fartamente distribuída por aqui com as
primeiras vitrolas. Artistas como os citados acima criaram uma música
brasileira que ia além do exotismo da riqueza de ritmos afros e indígenas, preconceito
que ainda nos dias de hoje sobrevive sob forma de resquícios, não apenas na
música, mas em muitos outros aspectos das artes (cinema, por exemplo) e da vida
em geral: o importado é melhor!
A música brasileira desde há muito está preparada para ser
ponto de partida para vôos maiores e novas invenções. Não foi nenhum bravata Villa-Lobos ter
declarado ao chegar em Paris que “...não
vim aprender e sim ensinar e mostrar a música brasileira!”
O Brasil vivenciava o fim de uma ditadura, através de um
processo enviesado de abertura política com uma Anistia Geral e Irrestrita,
enfim, uma solução política costurada pelas elites que nunca foi devidamente
compreendida pelo povo em geral, historicamente excluído das decisões. Era o ocaso de qualquer Revolução e mesmo do protesto, embora o vínculo com formas mais arejadas de
pensar não fossem elementos à margem.
Esses jovens aparecem produzindo antes de tudo, música. Música
despida de preconceitos. Mas a ousadia desse pessoal que apareceu num momento
crucial da história brasileira não era
um acaso: desde Rogério Duprat e mesmo antes com Garoto, Laurindo Almeida,
Moacyr Santos, etc., que o Brasil se acostumou à sofisticação de arranjos como
se conhece nas peças ditas eruditas, confirmando a nossa vocação musical, que
vem desde os tempos coloniais: o amalgamento branco, índio, negro, condimentado
mais tarde com imigrantes de diversas partes do mundo. Algo que vai além dos
aspectos sócio-culturais: o próprio entranhamento na alma nacional.
Assim, podemos dizer sem pejo: a nossa é uma Terra fértil, autêntico
Jardins de Delícias, onde o imaginário miraculoso ultrapassa os mitos. Como
disse uma vez o rabequeiro Zé Gomes, uma das figuras que mais compreendiam o
papel do artista na vida de uma nação: “O
Brasil é um formigueiro de artistas, basta cutucar que eles vão aparecendo, aos
enxames!”
A roça brasilis –
faço aqui uma merecida referência ao livro de Josely Vianna, Roça Barroca, sobre a arte poética do
povo guarani - faz jus à primeira
impressão destas terras aos olhos do estrangeiro, quando, Pero Vaz Caminha, deslumbrado, escreveu a El
Rey mencionando entre outras maravilhas
que “...nesta terra em se
plantando tudo dá!”
Ipsis facti, como
diria Elomar Figueira: de sambas, serestas, baiões, toadas, múltiplas outras experimentações:
tambores nos cais,
violas e rabecas em clamores.
Ponteados de violões
tecendo e bordando canções;
vozes líricas,
ternas vozes
em cantos de amor e guerra
em contradança;
são imagens como essas que avoam pelos céus do Brasil, que
essa turma de novos talentos surgidos num momento de profunda apatia evoca,
quando, apagadas as luzes das Utopias, fizeram desaparecer do horizonte os ideais
libertários dos anos 1960. A crítica musical brasileira está a dever ao publico
um painel que abranja o cenário que esses jovens – que hoje se aproximam da
maturidade – estão construindo, um legado que o futuro há de prestar tributo,
pois são eles que estão mantendo viva a tradição brasileira da boa música nos
confusos e incertos dias de hoje.
Mario Gil Fonseca é mineiro radicado em São Paulo há muitos
anos e sua mineiridade salta à vista. Discreto e perseverante, sua atuação
musical é trabalhada com a paciência de um ourives. Como todo artista quer ver
seu trabalho reconhecido, mas tem a
compreensão do quão é difícil a afirmação do artista que antes de tudo tem a
pretensão de ser fiel às origens, compromisso tácito, mas sem imposições, de
retratar seu tempo e seu povo, não abrindo mão e não se divorciando das
motivações e sentimentos, e tampouco da possibilidade criativa - no caso dele, a
inovação, a busca de novos timbres, ponto
de partida, tronco fundamental da obra. Tudo isso sem barulhos, sem
contundência revolucionária – mas o que poucos se dão conta é de que no fundo
acaba por lentamente construir uma revolução musical silenciosa, juntamente com
seus parceiros.
Sua robustez criativa
revela-se em seu primeiro disco, o seu primeiro recado: Luz do Cais, CD que não
muitos ouviram, é um instigante cartão
de visitas. Tudo está ali: uma proposta musical, avessa a preconceitos, revelando
algo das muitas fontes de onde bebeu: composições autorais, parcerias,
reeleituras de clássicos - Eleanor Rigby, dos Beatles. Chama atenção as faixas de abertura e encerramento
do CD –“Lá” e “Kindergarten” que parecem conduzir o leitor a universos atemporais,
passado, presente e futuro tendo berimbau, violão o sax como fios condutores...
Sua formação musical, como ele mesmo afirma, vem da
influencia do pai, musico amador, e da intensa atuação na noite paulistana,
atividade que exerceu durante muitos
anos com capricho e denodo. Rigoroso, além de memorizar o vasto repertório
exigido dos cantores noturnos, aprimorava um estilo que o tornaria permeável às
influências dos muitos parceiros e por conseguinte, dos muitos brasis que
encontramos nas metrópoles. E foram muitos os brasis que descobriu e continua a descobrir. Mário é desses artistas que
agrega, característica que lhe asseverou ao longo do tempo a imensa
versatilidade que seria uma constante em sua trajetória: um trabalho autoral, personalíssimo, mas que dialoga
intensamente com outras vertentes e linguagens (seu ultimo trabalho,
“Comunhão”, é simbólico nesse aspecto. Voltaremos a ele pouco adiante).
Antes disso, vale a pena relembrar e mencionar sua
participação no segundo disco de Consuelo de Paula, “Tambor & Flor”, à força mágica que empreenderam na faixa
“Deusa da Lua”, de Mestra Virgínia, uma cantiga selvagem,
ctônica, ígnea, pois parece ter sido talhada a ferro e fogo, que os
arranjos de Mário e a voz de Consuelo transformaram como que num outro
instrumento de combate, uma espécie de epopéia do espírito nacional:
“...a serpente mãe das trevas
Morava naquela
montanha
Naquela mata medonha
Lá naquele lugar
traidor...”
...e tome-lhe trinados de violões, percussões como arcabuzes, golpes de espada, aríetes;
a memória da terra, do povo, memória
coletiva! A junção força e delicadeza produziram uma obra prima do
cancioneiro nacional – infelizmente
pouco conhecida do grande público. Aqui, violões e voz remetem a profundidades do mais
recôndito interior brasileiro e montanhas galesas, mas também podem ser os
sopés andinos, montanhas argentinas,trabalhadores do mar, do campo, das
fábricas, sobressaindo, sempre, a face altaneira do povo. Ainda lembrando a
parceria Consuelo X Mario Gil: a mera e
simples participação nos vocais de
“Canto de Guerra”, no CD “Dança das Rosas”. Pra se ouvir quem puder, sem palavras.
Depois da apresentação de Luz do Cais, que mesmo não tendo
uma grande repercussão entre o publico, lançou Mario Gil na roda dos artistas
criativos. E seu rol de parceiros certamente alcançou um ponto culminante ao
conhecer Paulo Sergio Pinheiro e com ele compor e lançar um dos melhores discos
autorais de toda a história da MPB, o antológico “Cantos do Mar”, disco que com
certeza coroou um trabalho ou uma etapa, pois Mário ficou muito tempo sem
gravar, mas trabalhando intensamente como produtor através de seu estúdio, o
“Dançapé”.
“Comunhão” é seu ultimo disco solo e mesmo faz jus à sua
trajetória, com a coerência costumeira. Mario Gil derrama-se em candura, pura
poética repleta de imagens de um Brasil real, mas também imaginário, onírico. A
emoção e lirismo que transmite é com sobriedade, em momento algum se apega a nostalgias
ou a qualquer espécie de pieguismo. Contido e preciso, é o artista que
representa muitos sendo um artista para poucos – poucos, diga-se, em comparação
aos milhões de discos que a industria discográfica despeja no mercado:
“Caruana”, parceria com Paulo Sergio Pinheiro, é ponto alto,
sem desmerecer nenhuma outra. A meu ver, aqui, em Caruana, a emblemática
parceria com Paulo César Pinheiro atinge o ápice: sons que soam misteriosos,
subterrâneos, que junto as palavras parecem eclodir: simples e fortes,
ombreando com a magia que só o povo mestiço é capaz de produzir.
Tem a densidade dramática de “Anabela”, “Cargueiro” ou
“Lenda Praieira” (do CD “Cantos do Mar”), mas é nessa cantiga com ressonâncias
indígenas e africanas que grande parte das nossas profundas raízes são expostas
reveladas em toda a sua beleza e verdade: artista e história sócio antropológica
dão-se mãos:
Êh! Rio-mar, Êh!
Rio-mar
Povo de Caruana é que
mora lá
De Aruaque, de Jê, de
Juparaná
De Aruã, de Araúna, de
Aruaná
É o guardião do
rio-mar
Caruana anda naquele
mundaréu...
(Caruana: espírito que habita o fundo dos
rios. Espírito bom, que livra feitiços e cura doenças. “Caruana” bem que
poderia ser o espírito da musica e em vez de morar no fundo dos rios, habitaria
o fundo do corações dos homens e uma vez invocado, o livraria dos maus feitiços
e encantamentos.)
Enfim, “Comunhão” bem poderia ser: um breve painel, breve
sobrevôo sobre os Brasis de Capiba a Paulo Cesar Pinheiro; por sambas de roda, por frevos, por “acalantos”, outras canções. Por todo o disco e em tudo, permeia cores e
sabores, mil saberes através dos quais vislumbramos convites a conhecer a terra
e o lugar: um grande, um imenso Brasil, real e mágico, em seu despertar!
Falamos no reduzido espaço do blog de Mário Gil, que presta
tributo ao Brasil e sua gente e principalmente aos de sua geração, companheiros
de palco e, porque não?, de platéia, pois existe uma imediata identificação que
o distanciamento no tempo talvez um dia nos permita colher um retrato desses
artistas tomam a frente da MPB num momento tão delicado de nossa História – é
transição?
Outro Cd está sendo lançado simultaneamente ao
“Comunhão”, “Mar Aberto”, em parceria
com Renato Braz, Breno Ruiz e Roberto Leão: é simbólico, soa como um
desdobramento do grande mar (rioterramar) que se abre e acolhe, em comunhão...
Termino essas mal traçadas linhas com fragmentos de versos
de sua canção “Elogio”, que faz parte do “Luz do Cais”. Esses singelos versos
bem dizem algo de sua missão enquanto artista:
(...)
Mágicos dedos de um
brasileiro
Tem um gringo cego
Um vereador que é
violeiro
E um baiano que não é
negão
Trago um lobo no peito
Um Caymmi de antemão
Um computador com
defeito
Que não dá idéia na
canção
Dorme menina, tem medo
não
Esses fantasmas só
procuram mais uma canção
(...)
Uma Arte atemporal, sem tempo definido, sem lugar e sem rótulo ou outras armadilhas que possam prender o ouvinte num primeiro momento para depois abandoná-lo ou forçá-lo a buscar renovados ares num mundo poluído.
Uma Arte povoando os espaços imagético, sensorial; arte com história. Para a história!