AMAURI FALABELLA: A VIOLA INVADE A CIDADE


O jeito de tocar e cantar, tão familiar e tão autêntico, coloca quem ouve Amauri Falabella frente a um enigma: simplesmente não é possível acreditar que ele não tenha nascido e vivido no interior mais profundo do país.

No entanto, conforme sugere o titulo de seu segundo CD,  “Violeiro Urbano”, Amauri é inteiramente urbano. Nasceu e vive em Guarulhos, onde trabalha e exerce intensa atividade educacional e cultural. Cantor, compositor, trovador, violeiro, ele tem dentro de si uma verdadeira Legião, onde se misturam, condensam, amalgamam, os inúmeros estilos que o influenciaram desde sempre: de Vital Farias à Elomar; de Vidal França à Dércio Marques, passando pelos mestres da arte popular e o requinte de letras e arranjos sofisticados. Amauri é um servo fiel da arte musical.


Sua especial ligação com a viola caipira, um instrumento de origem européia, mas que encontrou no Brasil o seu jeito definitivo de ser, é dessas coisas misteriosas, inexplicáveis,

“Sou um violeiro diferente
Não nasci no interior
Eu jamais toquei boiada
Não conheço quase  nada
Das coisas do sertão
Mas quando pego a viola
Sinto uma coisa esquisita
Minha alma se agita ai ai ai
Não consigo largar dela ai ai ai”
(...)

Os versos acima abrem a musica título de “Violeiro Urbano” e são nítida, reconhecidamente autobiográficos. O que seria isso, se não a memória ancestral, viajante dos tempos que ao encontrar guarida, ali se instala? E que instrumento mais adequado e receptivo poderia encontrar a Musa Música que o coração, os dedos e a mente prodigiosa do criador de “Ciranda Lunar”, um viajante das estrelas? (Ele não é apenas violeiro, é músico completo, compõe versos e arranjos, e sobre qualquer um desses aspectos de sua arte, poderíamos aqui discorrer. Fiquemos, por ora, com o violeiro, dado o espaço reduzido do blogue).

Amauri Falabella dedilha a viola com técnica e sentimento, autenticidade, pois para ele, é meio de expressão. Um intérprete do sentimento da condição do homem moderno que vive o drama da separação da natureza. Quando empunha a viola ou o violão, o faz como o escritor empunha a caneta, o lavrador empunha a enxada ou o motorista profissional que segura o volante do carro ou caminhão. Um menos avisado poderia alegar tratar-se de técnica apurada, tal como se dá em muitos casos de  músicos brilhantes, virtuoses. Mas com ele, é algo além da técnica.Amauri é Alma: alma sertaneja e alma caipira.


CAIPIRA E SERTANEJO

Alma sertaneja e alma caipira. Existem sutis diferenças, sendo a mais evidente e mais importante a referência imaginária de lugar. O caipira comum característico é do interior paulista, e no seu toque facilmente reconhecemos a melancolia fruto de sua vida dura e da labuta na roça, ao contrário, por exemplo, do violeiro do litoral, mais gregário e festeiro. Variantes caipira se estendem entre São Paulo, Minas, partes de Goiás, o território aqui considerado não coincide com o mapa geográfico.
Já de Minas pra riba vamos encontrar a viola sertaneja, e seu timbre característico nos lembra as sagas medievalescas, os romances – talvez o termo mais adequado, nesse caso, seja rimance, do português arcáico. Para a execução dessas peças, a viola sertaneja de Adelmo Arcoverde é o exemplo mais evidente (naturalmente que quando falo da alma sertaneja de Amauri Falabella, não me refiro ao estilo de tocar, mas sim a evocação nostálgica imagética a que sua arte nos induz).
Caipira, Sertanejo: as figuras simbólicas mais conhecidas no imaginário são o Jeca Tatu e o Vaqueiro Encourado, mesmo com todos os riscos que traz ao entendimento a recorrência a tais estereótipos.
Praticamente todas as regiões rurais do país tem o jeito peculiar de tocar viola, seu timbre peculiar: ao se ouvir o violeiro, pode-se com relativa facilidade reconhecer  o estado ou região de origem de acordo com o estilo. Isso não se dá com Amauri, é ponto fora da curva,  pois, como sugere o título de seu segundo CD, é um Violeiro Urbano: não se lhe reconhece a origem: é Todos e Um, é coisa de alma, e as duas –  caipira e a sertaneja -, convivem harmoniosamente no mesmo ser.

Ao dedilhar e trinar sua viola, Amauri se transmuda e se alterna, é caipira, é sertanejo, sem deixar de ser o poeta trovador, sendo igualmente o Aedo: ouvir Amauri é ter a impressão de estar ouvindo um andarilho, desses que andam por toda parte e dotado de invejável memória, nos conta histórias de lugares distantes, figura muito comum na Idade Média quando andavam pelas vilas e burgos literalmente cantando novidades que de outro modo demoravam meses para chegar.Tais personagens eram comuns no Brasil dos séculos XVII e XVIII, causando indignação ao viajante Auguste Saint-Hilaire que num determinado trecho do seu livro “Viagem Às Nascentes do São Francisco”, diz que “...nesta terra basta ter uma viola às costas para divertir às pessoas e assim garantir pouso e comida!” 
Amauri, assim como Dércio, Perequê, Adelmo, Wilson Dias, Levi Ramiro, Paulo Freire, Zé Côco do Riachão, "seu" Manoel de Oliveira e muitos outros são herdeiros diretos dessa estirpe de poetas e músicos solitários que percorriam léguas e léguas a pé, depois em lombo de mula, mais tarde de trem, hoje de jeep, ônibus, carro ou avião. Não importa o meio de transporte, importa a função!


Amauri é poeta do ar - voa com os pássaros;
é poeta das flores – faz de pétalas floridas pouso e morada;
é poeta das águas, é poeta dos amore;
é poeta das amizades.
E assim viaja pelos mundos, reais ou imaginários, como uma ave benfazeja e encantatória:

Vai pela vida,  Poeta,
avoa,  avoa nas varandas
entoando modas e cirandas,
 com tambores, violas, violões.
Enternecendo poentes
bordando versos e canções
herança de um país
convidando à contradança!


Sua música evoca Minas e o interior de São Paulo. É música florida, se ouve junto o marulhar de águas, cantos de pássaros, sente-se no ar um clima de arreuniões festeiras.

DISCOGRAFIA

São quatro discos lançados até agora, além de muitas participações em discos de amigos e parceiros.
Cada um dos discos é uma história distinta, diferente, mas existe unidade entre os trabalhos e por isso poderíamos perguntar se seria cada um dos quatro discos, o desdobrar de uma história única, contínua? Uma sinfonia, é a vida de Amauri?
Todos e Um.

Cada um de seus discos merece ser agraciado como deve ser um dos artistas mais importantes de sua geração. Que se ouça, e que cada um diga por si:

Ciranda Lunar – 2001, trabalho antológico.A canção-título é um clássico

Violeiro Urbano – 2005, verdadeiro manifesto de sua crença artística


Amauri Falabella – 2009, destaque para as parcerias, que continuariam no CD seguinte


Parcerias – 2015, uma verdadeira arreunião de parceiros, de diversas partes do Brasil



UMA DEFINIÇÃO?

É simples e difícil falar e escrever sobre Amauri Falabella. Palavras não bastam, pois são pobres e insuficientes para definir um artista de sua grandeza. Ele tem o Brasil, suas cores, seus ritmos, suas melodias, tem tudo dentro de si. E tudo isso, todo esse gigantismo artístico contrasta com a doçura e humildade de sua pessoa, que dedica a cada verso, a cada estrofe, a cada acorde a dedicação de um ourives.
Sua auto-definição,

“...sou passarinho sonhador,
 fiz meu ninho numa estrela,
levo no bico pra longe toda a dor...”

 é um retrato bastante fiel e também involuntário  de si mesmo. Explica por si a delicadeza e lirismo com que pinta delicadamente cada etapa de sua trajetória,  e então nos damos conta de que Amauri compõe mesmo é uma Sinfonia. Uma Sinfonia que poderia se chamar Brasil. Cada disco lançado, um andamento revelado.

Para explicar um poeta, só mesmo outro poeta – no caso, uma poeta: a melhor definição que encontrei para Amauri Falabella estão gravadas no encarte de seu último (até aqui) trabalho, adequadamente chamado “Parcerias”.
Com a palavra, Consuelo de Paula:

Amauri Falabella caminha sobre as manhãs.
Segue pela outra margem do grande rio.
Ele conhece a alma da viola, seu fado é
inventar canções por ‘veredas que não tem fim’.
Ele canta num vislumbre do tempo com sua energia fluente:
‘o estalar da madeira
tinindo no violão
arrochando o peito da gente
numa forma de oração’.
Arranha as cordas de sua voz e de seus violões, entoando:
‘o sândalo perfuma o machado que o fere’!
E o andarilho continua até que o beijo seja flor,
sem nunca quebrar a corrente d’água,
Deixando a vida correr como um rio,
até que um dia possa cantar a última moda.
Por isso Amauri reúne parceiros,
cantadores, instrumentistas e amigos neste CD
que representa seu clã de rainhas e reis coroados
pelo extremo amor e dedicação à música brasileira.
Nosso violeiro andante conhece bem os vãos
entre as cordas da viola por onde passam encantos
e surpresas, por onde passa a
Arte que habita o profundo e a pele
destas parcerias. Já podemos ouvir
‘no vento uma cantiga nova
Soando na imensidão da pétala da rosa’”

(Consuelo de Paula)


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