O trovador Roberto Bach está mais do que nunca decidido a
desvendar histórias e mistérios da Bahia. Mas não da Bahia comum. A que falamos
aqui vai além do que nos conta os livros de história e os estereótipos que
cercam batucares de tambor num mundo mítico onde reina o eterno carnaval,
fantasia que ainda norteia turista menos avisado.
Fora as fantasias grotescamente comerciais, a ditas “pra
inglês ver”, a Bahia é um manancial invejável de cultura e história que vai do
conhecido mundialmente Jorge Amado ao quase desconhecido e também escritor
Jorge Medauar, tão bom e tão importante para a compreensão da cultura baiana
quanto o xará mil vezes mais famoso. E o mais espantoso é que há muita coisa ainda
por descobrir em relação à Bahia; há uma aura mística que envolve praticamente todos
os aspectos da vida de quaisquer das regiões do Estado, do rural ao urbano, do
litoral ao interior profundo; são tantos e tão diversificados os aspectos da
vida baiana que grande parte deles passam despercebidos aos olhos de todos: misticismo, magia e realidade se imbricam, aguçando a imaginação artística, porém, são poucos que logram tocar-lhe verdadeiramente o cerne.
Roberto Bach decidiu-se por dar atenção ao interior/sertão
baiano, que, apesar de razoavelmente conhecido, é pouco explorado – ou pelo
menos, não tanto quanto deveria. Seu olhar atento, curioso e de certo modo
sentimental, rendeu por ora seus dois últimos CDs: “Os Sertões”, baseado na obra de Euclides da
Cunha, onde conta e canta através de 13 canções, que fazem as vezes de
“capítulos”, o pior massacre de nossa
história e agora prepara “Terra”, com
forte referência à obra do cineasta Glauber Rocha, natural de Vitória da
Conquista.
Antonio Roberto de Oliveira Bach vive há mais de 30 anos em Vitória
da Conquista, fez daquela cidade do sertão baiano seu porto seguro. Isso
certamente não foi acaso, pois aquele é um lugar que parece dotado pela
Providência de dons poéticos, como se uma substancia desconhecida existente em
suas águas ou no próprio ar tornasse a produção artística algo corriqueiro. Se
não, vejamos: é por aquelas paragens que nasceu e vive o bardo Elomar Figueira
de Melo, um dos “troncos” ou esteios fundamentais da música brasileira, a ponto
de ombrear com Vila-Lobos, Noel Rosa, Gonzagão, Noel Guarani, Chiquinha Gonzaga, Caymmi. Elomar
imortalizou a geografia rústica da região ao torná-la cenário de suas peças que
evocam a cultura ibérica antiga até o Oriente Médio.
Vitória da Conquista, lugar de beleza áspera e forte, é
terra de poetas, cantadores, artistas plásticos. E não deve ser por acaso ser a
terra natal do cineasta Glauber, o mais importante do cinema brasileiro, a
despeito de gostar ou não de seus filmes. Independente de sua estética
cinematográfica ou de sua proposta ideológica, Glauber foi antes de tudo, um pensador
da cultura brasileira: com ele o Brasil se descobriu capaz de produzir seu
próprio cinema, sem se submeter aos modelos dos grandes centros, Europa e EUA.
Glauber merecia ser melhor conhecido, deveria servir mais de inspiração para
todos nós. Um CD com musicas inspiradas em sua figura e em sua atuação é um
alento num país que não dá muito valor à sua história; a falta de cuidado para
com os patrimônios nacionais é o puro reflexo disso, mas tenho forte esperança
de que um dia isso mudará.
UMA PONTE ENTRE CANUDOS E VITÓRIA DA CONQUISTA
A Bahia retratada por Roberto Bach são dois recortes
precisos e representativos, Canudos e Vitória da Conquista. A distancia temporal e espacial entre as duas é facilmente
ligada por uma ponte: são duas presenças fortes no imaginário nacional: a
tragédia dos sertanejos seguidores de Antonio Mendes Maciel, o “Conselheiro” e
o universo Glauberiano.
A construção dessa ponte imaginária de Canudos a Vitória da
Conquista desenha um novo ciclo da carreira de Roberto Bach: os dois trabalhos
surgem a seguir à sua fase medievalesca. A alcunha “menestrel” lhe cai
adequadamente, pois provavelmente seja o nosso mais autentico trovador do
Brasil, conhecedor profundo da música e da cultura medieval, de caráter europeu,
mas que encontrou no interior do nordeste brasileiro ecos cujas ressonâncias
persistem até os dias de hoje, graças ao isolamento (ou abandono) a que a
região foi submetida. A musica do Quinteto e da Orquestra Armorial, o próprio
Elomar citado aqui, em todos eles a influência medieval se destaca.
Roberto Bach muito pesquisou
compositores e escritores dessa época fascinante e pouco conhecida do mundo: a
atmosfera mítica e mágica do período pode ser pressentida em sua trilogia Oliveira, Pequeno Concerto Campestre e A
Colina dos Cavalos Fortes, que alguns chamam não sem razão de Renascentista
– eu prefiro medieval.
(Por ocasião do lançamento d’A Colina dos Cavalos Fortes
declarou que sua obra do período estava esgotada, sob o risco de repetir-se a
si mesmo).
O disco Os Sertões, trabalho baseado em Euclides da Cunha, é
uma espécie de repetição do mundo medieval, mas nele não está mais a dolência
das cantigas de amor ou de amigo, nem a ironia das cantigas de escárnio; n’Os
Sertões o mundo “medieval” é pressentido sob seu ponto de vista mais cruel, ao
retratar a tragédia sertaneja ocorrida no final do século XIX na cidadela de
Canudos. O título desse disco foi posteriormente mudado para “Bahia Banhada em
Sangue” e novos arranjos acrescentados, com a introdução de guitarras elétricas
a la Pink Floyd – que valeram o subtítulo de “Musica Progressiva
Brasileira”. Essas variantes e acréscimos apenas dão conta da mente febril e
quase delirante desse Goliardo em época errada, nascido por acaso no século XX.
(Os Goliardos – numa definição superficialíssima - eram
monges/clérigos pobres expulsos dos
mosteiros e para sobreviver tocavam e cantavam nas festas profanas. Escreviam
poemas satíricos, cínicos, anticlericais, eivados de desprezo e rancor.
Atacavam diretamente a Igreja, a quem acusavam de hipocrisia moral, mas
atacavam diretamente qualquer forma de hierarquia organizada e por isso foram
duramente perseguidos. Músicos talentosos e malditos, são hoje chamados os
hippies da Idade Média. Uma de suas peças que sobreviveu ao tempo é a Ópera
Carmina Burana, versos Goliardos musicados por Carl Orff).
E depois d’Os Sertões
ou Bahia Banhada em Sangue, ele acaba por estabelecer (ou restabelecer) a ponte, pois muitos dos personagens reais
da tragédia canudense poderiam ser personagens de quaisquer dos filmes de
Glauber: os retoques finais dessa ponte estão
sendo finalizados e o CD “Terra” deve estar pronto em meados de novembro.
Quem conhece os filmes de Glauber vai entender: a referência
a “Terra” remete diretamente ao cineasta e é um convite a realizar uma viagem
sonora e sentimental pelas terras que povoaram
e inspiraram a mente inquieta do criador
revolucionário de “Deus e o Diabo na
Terra do Sol”, “Terra em Transe” e “A Idade da Terra”.
Ouvindo suas 10 faixas, mais um bônus, as canções são
andanças pelo universo glauberiano: ora são referências sentimentais da
infância, ora se referem à atuação do artista que via na arte um instrumento de
transformação sócio-cultural, ora o poeta louco, delirante, que misturava
neorealismo com nouvelle vague, numa
estética hiperrealista. Seus personagens vagueiam por um sertão atemporal, sem
rumo, como sobreviventes de um cataclisma apocalíptico: seres renegados, sem
terra, sem educação, verdadeiros parias em sua própria pátria.
Existe, assim, uma ponte nem tão imaginária entre massacre
de Canudos e o universo glauberiano, como se esse último fosse o limbo onde as sofridas
almas dos protegidos do Conselheiros que vagueavam dispersas pelos muitos
sertões, finalmente encontrassem incerto e precário pouso.
Roberto Bach ouviu suas vozes e traduziu seus dramas,
transformando em música que ora nos encanta com uma dolência quase inocente ora
nos fere com a aspereza de estocadas impiedosas de punhais, violentas explosões
onde se sente o cheiro de pólvora e pela Terra respinga sangue. Uma característica
dessa nova fase do compositor é a incursão por novos estilos, como “cirandas” e
“reisados”, elementos fundamentais do universo sertanejo.
Como num exercício de prestidigitação, somos transportados
no tempo: os cinco séculos, desde o Descobrimento (que o paraguaio Roa Bastos
chama de “Encobrimento”, em seu livro A Vigilia do Almirante), que contemplam o
interminável drama sertanejo. Entra governo sai governo muda regime político e
o sertão ainda é o mesmo.
As musicas do “Terra”:
1 – Terra
2 – Casa de farinha
3 – Ciranda de praia
4 – Dentro de mim
5 – Lembranças apenas
6 – As folhas e a vida
7 – Os três segredos da vida
8 – Reisado
9 – Roupa de feira
10 – O poeta louco
Faixa bônus: Chuva em açoite
Nalgum ponto acima eu disse que Roberto Bach é um goliardo
nascido na época errada. Ou talvez não.Talvez tenha nascido exatamente na época
em que seu espírito rebelde e provocador, que nega veementemente fazer média
com as hipocrisias reinantes nessa época confusa, e que –exatamente em tempos
como esses, seja o profeta a brandir versos e acordes denunciadoras. E por isso
é amaldiçoado.
Seu disco está pronto, é uma obra prima, assim como seus
trabalhos anteriores, porém é escandalosamente ignorado por todas as mídias.
Obras clássicas que são, de inegável valor artístico e cultural, um dia será
reconhecida, aplaudida, quiçá estudada, esmiuçada. Por ora Roberto Bach procura
parcerias para lançar seu trabalho.