O MERECIDO SUCESSO DE "O FILME DA MINHA VIDA"





Contrariando uma das premissas do blog ser-tão paulistano – de destacar obras que não façam do sistema de mercado cultural – hoje vamos falar de uma obra que certamente arrebatará muitos milhares, quiçá milhões de admiradores, com direito a resenha nos principais jornais e revistas do país. Falamos de “O Filme da Minha Vida”, uma apologia à simplicidade e a beleza. Um genuíno exemplar da arte brasileira de alta qualidade, uma ode à fantasia e a esperança, que a magia do cinema pode nos proporcionar. A Arte sempre será um porto seguro.

Não é de hoje que o cinema nacional dá sólidas mostras de recuperação de um lugar no coração de nosso povo que em épocas passadas foi mais presente. Os filmes de Mazzaropi, as chanchadas com Oscarito de Grande Otelo, os musicais, os dramalhões em grande estilo. Podemos citar dezenas de filmes ditos autorais ou de apelo comercial, como Estrada da Vida, de Nelson Pereira dos Santos; O Ébrio, com Vicente Celestino ou ainda o chapliniano Bonga, o Vagabundo, todos eles capazes de disputar público e mercado com filmes estrangeiros. Sim, o cinema brasileiro é uma realidade. (Na esteira da busca de consolidação, não se poderia  esperar coisa diferente: logramos cair em muitas mazelas, as famigeradas patotas ditas “culturais”, círculos viciosos, onde, quem está dentro não sai e quem está fora não entra. Muita grana escorreu pelos ralos dos órgãos “oficiais” destinados a tratar da produção cinematografica nacional, sob muitos codinomes: Embrafilme, Ancine, leis de incentivos, etc.)
Com ou sem Embrafilme ou Ancine ou através de produção independente, o cinema brasileiro, é possível, já demos provas disso ao longo do tempo. Filmes campeões de bilheteria e de alta qualidade não são exceções  ou acasos, são conseqüência de empenho, trabalho, profissionalização, vocação, o que faz toda a diferença:  é a respeito disso que trataremos a seguir:

Se alguém for ver “O Filme da Minha Vida”, direção de Selton Melo, não pense que se enganou de sala: voce não está vendo um filme estrangeiro dublado! É mesmo um filme brasileiro, nacional, falado em bom portugues - com sotaque gaúcho, sem as afetações forçadas de caipirês ou nordestinês a que tanto nos acostumamos, a ponto da saturação: Ariano Suassuna disse certa vez (cito de memória) que “...sotaque não é miado...” O que Ariano chama de “miado” é a vulgarização do rico linguajar popular, estereotipado, forçado,  para “inglês ver”, que tanto contribuem para o preconceito, para não falar da desinformação.
O Filme da Minha Vida consegue reunir elementos que agradam o público comum que deseja apenas divertir/curtir ou àquele que se propuser a refletir sobre a arte em si ou o próprio discurso  da linguagem cinematográfica.
O diretor usa e abusa de chichês e os mesmos não cansam, pois o faz em justa medida, dentro da essência dessa arte. Cinema é magia, truques de luz e sombra e quão maior seja a habilidade do “mágico” em manipular esses elementos – luz, sombra, efeitos sonoros, linguagem falada  – levando ou trazendo o espectador para o seu Universo Mágico, mais próximo estará do objetivo principal da arte ilusionista.
Em tempos extremos como os que vivemos atualmente, caracterizados por um intenso dualismo, podemos “quase” dizer que O Filme de Vida contém elementos revolucionários. Mas nada de tomadas/ângulos que ampliam a realidade, nada de montanhas russas capazes de provocar sensações que ativam determinados neurônios que nos farão mais inteligentes! O filme surpreende por utilizar elementos banais – se é que podemos assim chamar a Beleza e Simplicidade. É um filme para se ver e curtir, sem mirabolâncias, mas, curiosamente aí reside seu aspecto revolucionário ao cativar o espectador, levando-o ao uso da imaginação, coisa rara nos dias de hoje, onde a ação ininterrupta nos deixa sem fôlego. As imagens belíssimas atingem o âmago da emoção do expectador não por fazê-lo “participante” da cena, como numa exibição 3D. As filmagens externas ou internas são situações em que o público assistente poderia tranqüilamente estar participando, tal a familiaridade: os dilemas, angústias, dignidades,fraquezas, baixarias, dúvidas, alegrias, descobertas são facilmente discerníveis seja em nós mesmos ou em alguém que conhecemos. Não existem no filme heróis ou vilões. Todos os personagens e situações são plausíveis, por assim dizer.

Pode não ser “o filme de nossas vidas”, aquele filme com o qual todo diretor sonha, que marcará gerações por décadas! Mas faz justas e inteligentes referências a filmes que fizeram histórias. Algumas explicitas, como a farta citação do faroeste Rio Vermelho, de Howard Hawks, um dos filmes mais emblemáticos e encantadores de toda história do cinema, marcando a tensa oposição entre os personagens de John Wayne e Montgomery Cliff (que também marca diferenças cruciais de estilos de interpretação e modos de ver a vida entre o “xucro” vaqueiro Wayne e o sensível Cliff), outras citações mais sutis, como a cena que abre e fecha a história (a encruzilhada, onde de um lado segue a linha férrea, do outro a estradinha de terra), que faz lembrar Rastros de Ódio, com a porta do saloon que abre para a história e ao final, fecha.
E como toda boa história de ficção, não se prende, corre solta. A exibição na cidadezinha do filme Rio Vermelho parece situar a história  entre o final da década de 1940 e inicio de 1950 (o filme é de 1948) e as próprias situações, como a dificuldade de comunicações no Brasil de então, sugere situar o enredo nesse período. Porém, um dos carros chefes da trilha sonora remete aos anos 1970, com a re-descoberta de “Coração de Papel”, que revela a origem musical iê-iê-iê do hoje sertanejo Sérgio Reis. Alguns clássicos do mais tradicional jazz urbano poderiam situar a história num ambiente cosmopolita e não uma cidadezinha perdida nos confins da serra gaúcha (aliás, na história não existe qualquer referência explicita de “lugar”. Só se sabe que fica numa região fronteiriça, aparentemente com o Uruguai.).


                                           John Wayne e Montgomery Cliff: duelo de estilos
Merece destaque as participações especiais: Antonio Skarmeta, autor do livro que inspirou o filme, outra referência que lembra O Céu Que Nos Protege, de Bertolucci, com a voz de Paul Bowlles no final, que Cacá Diegues tentou imitar em Tieta do Agreste, com Jorge Amado - e não deu certo, ficou muito na cara e perdeu todo possivel impacto. E Rolando Boldrin, no papel de Giussepe, o condutor do trem, um personagem atemporal, sem idade, cujo olhar penetrante parece saber tudo a respeito dos passageiros que conduz: por isso diz: "...o trem tem de partir sempre na hora, nem antes nem depois!" Eis outra referência do cinemão: o mago Gandalf diz algo parecido no inicio d’O Senhor dos Anéis: "...um mago nunca se atrasa, Frodo Bolseiro! Não chega nem antes nem depois, mas sempre na hora!"  Enfim, podemos chamar esses recursos de clichês, mas não no sentido pejorativo, da busca das emoções fáceis e baratas, de gosto duvidoso e comercial: é a busca da emoção básica, latente em todos nós: não é fácil ser simples e é nesse sentido, que podemos ver o filme como algo revolucionário, pois revisita velhas estações, para sempre marcadas em nossas vidas, mas sem  pieguismo. A nostalgia não é somente reviver o impossível passado glorioso, mas pode também produzir novas emoções.
Destaque para a direção dos atores e a contenção dos personagens nas situações emocionais notadamente tensas, como a condição da mulher agreste, linda, madura, no auge da sensualidade,  desejada pelo macho de plantão, vivida magistralmente pela atriz Ondina Clais, a mãe de Tony.
                                             O diretor Selton e o escritor Skarmeta

O filme de Minha Vida, enfim, é cinemão ao melhor estilo, cuja função principal é entreter. Mas provoca reflexões, se o expectador estiver disposto a tal. Respeita a imaginação ao deixar que muitas das situações prováveis não sejam mostradas explicitamente – como será, por exemplo, o encontro entre Nicolas e Ondina? Vendo o filme, impossível não traçar paralelo com situações vividas em nossas próprias vidas ou a outros filmes, que poderiam ser igualmente chamados “filmes de nossas vidas”.
A singela viagem do trem, seu fascínio, seus mistérios nunca terminam, apesar dos anacronismos dos governos e suas opções político/econômicas equivocadas, a serviço de interesses imediatos. A ganância do empresariado do transporte rodoviário que não hesitou em destruir as ferrovias, macomunado com governos travestidos de modernismos.

Não importa, sempre seguiremos pelos trens de nossas vidas, sempre estaremos indo a algum lugar ao encontro ou em busca de algo, guiados pela mão segura do condutor Giussepe/Boldrin, que ao responder por que gosta do seu ofício, responde bem ao estilo do, Sr.Brasil: “Eu levo as pessoas para resolver suas coisas!”. Detalhe: esse personagem tão importante na trama (o condutor) não existe no livro de Skàrmeta!
O filme poderia ter terminado quando o trem mergulha na escuridão do túnel, pois os acontecimentos futuros já estão delineados. Mas seríamos privados da emoção de ver Sofia e Tony/Luana trocando ternos olhares pelos caminhos que seguem paralelos: vidas e destinos que foram salvos pelo amor e pela tolerância...
 O Filme da Minha Vida é filmão. E não é americano, não é francês, não é italiano. É um filme brasileiro que se ombreia ao melhor do cinema mundial! Deve fazer justo sucesso de público e critica!
E, conforme disse Selton em entrevistas, "a arte salvará o mundo", parafraseando Tolstói!





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