O PURAHÉI é um Trio formado por uma brasileira, um argentino
e uma paraguaia: flautas, piano e voz tecem um quadro, pincelado a seis mãos, possibilitando
a quem ouve suas canções uma visão sonora de uma região do continente
sulamericano repleta de beleza, lendas, mistérios e tragédias. Evocações à
mística guarani e a história politica e cultural evoluem, fertilizando a
atmosfera, entremeados aos acordes.
Sabemos pouco daquela região dominada em grande parte pela
planície do pampa. E o pouco que
sabemos nos vem à consciência embotado pelos diversos estereótipos que
comumente saltam aos olhos ao imaginar a figura do gaúcho. À primeira vista nos vem à mente a milonga, o chamamé, a
chacareira, a baguala, o zamba, etc., mas isso é apenas puxar o fio do novelo
oculto: existe muito mais e a cada oportunidade que se apresenta para descobrir
e conhecer, vislumbramos a imensa riqueza que subjaz ainda oculta.
Todos que labutamos, por dever de oficio ou simples prazer
(meu caso) no inglório universo da cultura popular estamos de acordo num ponto:
não é do interesse das grandes mídias ou das grandes oligarquias que dão as
cartas por estas bandas fomentar alternativas culturais que possam vir fazer frente ao monopólio
ditado pelos grandes centros “produtores de cultura”, geralmente restolhos de
fácil assimilação, cuja função é o “distraimento” das massas, para assim
desviar as mentes e corações do conhecimento de seus próprios valores, que por
sua vez conduziriam a um aprofundamento e questionamento da realidade que
sempre os cercou.
(Contudo, resistência, há! Louve-se a lendária figura do
menestrel, também chamados aedo ou rapsodo, figura que desde a antiguidade
percorre os caminhos a pé ou em lombo de animais, tendo como arma o
instrumento. Câmara Cascudo os decanta no seu clássico “Vaqueiros e
Cantadores”, onde aponta as várias origens deste personagem que por muitos
séculos era a única forma de transmitir e receber noticias entre os aldeões de
vastíssimos territórios. Tais figuras sobreviveram ao século XX, e no nosso
tempo o personagem que mais se aproxima deles deve ser a do cantor militante. Woody Guthrie, Leadbelly, nos EUA; Vitor Jara,
Atahualpa Yupanqui, Violeta Parra, Dercio Marques e Noel Guarani, na América do
Sul. De certo modo, todos os artistas chamados independentes são herdeiros diretos ou indiretos. Atualmente, os
artistas que fazem parte do Projeto Dandô, idealizado pela paulistana Katya
Teixeira, justamente inspirada por Dércio Marques, que durante toda a sua vida
foi uma espécie de guia para os artistas desvinculados das grandes gravadoras,
desejosos de mostrar seu trabalho e que jamais teriam oportunidade, não por
falta de conteúdo e talento, mas por razões
de mercado, por assim dizer. Poucas vezes um projeto artístico cultural foi
tão ousado quanto o Dandô, pois simplesmente ignora as leis do mercado, e no peito e na raça reúne gente de várias
partes do país e até de alguns países da América do Sul).
O jovem Trio segue, assim, uma trilha antiga, cujas pistas, invisíveis ao olhar vulgo, são por eles conhecidas, tal como o mítico caminho do Peabirú; eles tem em comum com os artistas acima citados o
fato de produzirem uma arte completamente diferenciada; não falo de questões estéticas/técnicas, das quais nada entendo ou ideológicas – embora tais elementos estejam presentes. O cerne de seu trabalho é uma organicidade que a torna única, reconhecível somente na arte autêntica. O Cd, segundo do Trio, o Yrupa
Purahéi – Canções da Margem do Rio, mistura regravações de clássicos
conhecidos, com outras de carater regional/folclórico e duas composições instrumentais de Chungo Roy, o arranjador do grupo. O que essa arte orgânica e
autentica tem de diferente é a capacidade de despertar em quem ouve o mesmo
profundo sentimento de liberdade e de
autonomia que moveu o compositor original. (O rasqueado ou polca ou guarânia “Pé de Cedro”, por exemplo,
permite interpretações das mais diversas, sempre permeando entre si elementos
nostálgicos dramáticos, alguns explícitos, outros subentendidos, permitindo
versões e estilos variados, desde Miltinho Rodrigues, Renato Teixeira e agora
do Purahéi Trio, sem contar as duplas caipiras ou sertanejas. Muitos são os
mundos gerados continuamente em torno do singelo Pé de Cedro que o narrador um dia encontrou a muda na mata e trouxe
para cultivar no quintal de casa, até mesmo um improvável conteúdo ecológico de
preservação, que com certeza o autor não imaginou...)
Há quem diga que arte ruim voltada para as classes
populares, faça parte de um diabólico plano de emburrecer as massas e
consequentemente mantê-las mais facilmente afáveis, domináveis... Não sei se as
tais classes dominantes chegam a esse nível de sofisticação maquiavélica, pois,
o que, afinal, lhes interessa é o servilismo: querem arte e artistas, pouco
importa a índole, contanto que sirvam a seus interesses. Para eles, o conteúdo
é irrelevante! Seria por isso que o
“mercado” é tão inacessível a quem não faça parte de um grupo? Será também por
isso que muitos artistas e literatos
emprestam seus nomes à causas duvidosas? Será também por isso que as
verbas e financiamentos são geralmente acessíveis a seletos grupos, onde quem está dentro não sai e quem está fora
não entra? Esse sistema, aparentemente indolor, torna a classe artística repleta
de castas,inamovíveis. Entretanto, a
atuação dos independentes são sementes ciosamente germinadas que podem em breve
se tornar um contrapeso e o fato de chegar até nós, com todas as dificuldades,
é uma luz que se acende.
As duas moças e o rapaz que compõem o Purahéi Trio não são
guerrilheiros da musica ou agentes culturais engajados na luta dos povos
oprimidos. Eles apenas e tão somente cantam e tocam e nos cantos e acordes
emitidos, não se percebe sinais de militância, nenhum laivo provocativo,
nenhuma mensagem sub-reptícia, nenhum código que possa conter mensagens que
contenham senhas para um levante, um chamado às armas! Apenas tocam e cantam,
mas com uma leveza tãoarrebatadora dos sentidos que nos faz deter o passo e
parar cuidadosamente a ouví-los. E se os ouvimos com atenção e cuidado, não há
como não refletir sobre as histórias das canções e consequentemente, a história
da região e seu povo. Esse modo de ver e sentir musicalmente o mundo é uma característica nossa, brasileira,
herança compartilhada com nossos Hermanos, nossos vizinhos. Quis uma feliz
conspiração dos astros que estivesse tão presente os guarani, povo essencialmente musical, conforme atesta seu
descendente direto, Dércio Marques.
Fora os atributos artísticos, um traço marcante que identifica
e qualifica o Trio é a liberdade. A flauta da brasileira Maiara Moraes, o piano
do argentino Chungo Roy (que também assina os arranjos) e a voz da paraguaia
Romy Martinez navegam delicadamente como folhas movidas por suaves brisas, impulsionadas
pelas pulsações dos corações, onde delicadamente pousam.
Três jovens, simbolizando três nações (que poderiam ser tantas
outras, do continente ou algures) que em tempos confusos com os que vivemos
atualmente promovem a integração que o mundo politico e diplomático faz anos
tenta, inutilmente: o Mercosul, cada vez mais sonolento e enfraquecido, dormita
em seu berço carcomido, assim como os velhos ícones ideológicos, cujo fervor
tornou-se paquidérmico, sendo ultrapassado pela história.
Ainda bem que temos a Arte! A Arte salvará o mundo! Nossa
Redenção!
Yrupa Purahéi – Canções das Margens do Rio - reúne alguns
clássicos do vasto cancioneiro que por décadas animaram as zonas rurais das
fronteiras dos países, preferencialmente entre Paraguai e Brasil, onde as
guaranias, polcas e rasqueados, ritmos que se espalham pelo Mato Grosso do Sul
e leste do estado de São Paulo. Algumas faixas do cancioneiro nacional convivem harmoniosamente com outras de
caráter regional, que falam mais diretamente à alma campeira do “gaúcho”, o habitante das
aparentemente tranquilas planícies do “pampa” – aparentemente, pois a monotonia
é apenas aparente, os instrumentais, de viés jazzistico, estabelecem um curioso contraponto entre o tradicional
e a atmosfera de uma região dinâmica, mas que não perde o fio da história.
Mas não são
saudosistas, as moças e o rapaz seguem em frente. O Purahéi Trio bebe
livremente de várias fontes – do folclore, do clássico, do popular - e na sua
caminhada, busca e encontra a comunhão possivel, jamais o confronto. Talvez por
isso, faça sentido juntar num mesmo projeto compositores tão dispares quanto o
caipira Angelino Oliveira e Vitor Ramil. O riquíssimo colorido ganha brilho
especial ao mostrar ao resto do Brasil a mistura de idiomas comuns à região,
ignorando as fronteiras politicas: guarani, português e castelhano.
Quem ouve o disco sente o sopro, não do implacável minuano,
o vento gelado e ardente vindo das geleiras do Polo Sul, mas a delicada brisa
das melodias puras trazidas pela voz doce da Romy Martinez, a magia da
flautista Maiara Moraes, a condução segura de Chungo Roy: as melodias emergem
das águas puras do aquífero guarani como encantatórios cantos de sereias.
A formação incomum do grupo não tem os tradicionais violão e
gaita ponto. Contudo, se repararmos bem, haveremos de vislumbrar as presenças ocultas
desses instrumentos tradicionais, pois são presenças imanentes: podemos sentir
os trinados e dedilhados. Por isso podemos auferir ao Purahéi Trio a aura de
prestidigitadores: transformam a força hercúlea e heroica dos herdeiros
culturais do Indio Sepé em pura delicadeza.
Em seu segundo
trabalho, YRUPA PUHARÉI – canções das Margens do Rio, os jovens revolucionam.
Mas com muita ternura.
Repertório:
1 Estrangeiro
(Alegre Corrêa / Romy Martinez)
2 Batendo água
(Luiz Marenco / Gujo Teixeira)
3 Tristeza do Jeca
(Angelino de Oliveira)
4) Tapera (Vitor
Ramil/ João da Cunha Vargas)
5 Pé de cedro
(Zacarías Mourão / Goiá)
6 Irupe (Chungo
Roy)
7 La Cautiva
(Emiliano R. Fernández / Agustín Larramendia)
8 Tocando em frente
(Almir Sater/ Renato Teixeira)
9 Milonga das três
nações (Fernanda Rosa)
10 Sonhos guaranis
– Avá kéra poty (Almir Sater / Paulo Simões / Romy Martínez)
11 Tres Hermanos
(Chungo Roy)
12 faixa bônus
Estrangeiro
No disco, participações
especiais de:
- Bebê Kramer,
acordeon, na faixa bônus Estrangeiro;
- Carlinhos Antunes,
viola caipira na faixa Tristeza do Jeca;
- Léa Freire, faixa
baixo e flauta contrabaixo em Irupé;
- A Corda em Si
(Fernanda, voz e Mateus, baixo), na faixa Milonga das Tres Nações.