Quem conhece a obra de Dércio Marques deve estar
relativamente familiarizado com o termo “elemental”, largamente presente em seu
disco “Segredos Vejetais”, provavelmente seu trabalho mais elaborado. Não sei
se é seu melhor disco – difícil escolher dentre tantas obras primorosas e pontuais,
que ora focam um Brasil profundo, ora América Latina ou andanças pela Peninsula
Ibérica, onde travou um contato fundamental com José Afonso, o grande artista
português e um surpreendente Paco Bandeira, diferente do “Paco” conhecido pelos
próprios portugueses; melhor é deixar
que cada um faça sua escolha pessoal, pois Dércio era muitos, como mostra sua
discografia.
Literalmente um andarilho a serviço da música, que de vez em
quando parava e erigia uma torre, sob forma de disco. Embora houvesse uma
unidade intrínseca entre eles, eram independentes entre si, mantendo,
entretanto, uma invariabilidade rara na procura incansável da brasilidade
contida na música. Embora o Brasil seja um país essencialmente musical, tais
aspectos identitários facilmente se perdem nos desvãos dos caminhos, a ponto de
tornar os próprios “invisíveis”. Durante toda a sua vida Dércio arregimentou um
número grande de seguidores e simpatizantes de sua “causa”. O “Projeto Dandô –
Círculo de Música Dércio Marques”, do qual faz parte Érick Castanho, é uma
justa homenagem ao menestrel, buscando na prática restabelecer a rede de
vínculos entre artistas e público de diferentes lugares do Brasil e América
Latina, exatamente como ele fazia, embora, no seu caso, fosse algo mais intuitivo
do que regiamente projetado..
.
Dentre o “projeto” de
vida de Dércio, em sua existência intensa e aparentemente caótica, verdadeira
máquina criativa, compondo com parceiros das mais diversas procedências e
estilos, “Segredos Vejetais” é simbolicamente seu legado: tudo está ali, os ritmos
brasileiros e latinos, as lendas e sobretudo seu imenso amor pela natureza, que
talvez tenha sido a face de sua militância mais intensa e clara, apontando sem meios termos para as denuncias
da devastação que à época da produção do disco já se encontrava em processo
acelerado. Obra profundamente poética, onde a fantasia não encontra limites e
os “espíritos da natureza”, seres geralmente arredios, ganham cor, forma e voz.
Outros trabalhos deram continuidade, mas
tudo já estava de algum modo presente em “Segredos Vejetais”. Na musica que
poderia ser subtítulo do disco, “Natureza Oculta”, de Milton Edilberto, estão
presentes várias citações dos elementais,
que permeiam todo o trabalho.
(”Elementais” são os espíritos da natureza. Silfos, Salamandras, Ondinas e Gnomos, que comandam respectivamente o Ar, Fogo, Água e Terra.)
“Elemental” é o nome do disco de estréia do mineiro de
Ituiutaba, residente em Uberlândia, Érick Castanho, um fruto da grande árvore
derciana. (Não por acaso, Dércio é da mesma região. Diz a lenda que Uberaba e
Uberlandia disputam a primazia de ser a cidade natal do musico).
Elemental, o disco,
é daqueles felizes empreendimentos que melhoram a cada audição que realizamos. Uma
celebração da cultura brasileira e latina, de forma alegre, leve e descontraída,
como num sarau entre amigos reunidos para homenagear temas sagrados do
folclore, das folias, referências à matriz luso brasileira, nos belos temas
instrumentais “Ventos do Minho e Histórias Além-Mar”. Vale mencionar o desafio
de executar "Riacho de Areia". Deve ser a musica folclórica mais
gravada do Brasil: Dercio Marques, Doroty Marques, Tavinho Moura, Almir Sater, Milton
Nascimentos, Consuelo de Paula, apenas para citar alguns artistas. Cada versão
melhor que a outra, definitiva! E por outro lado, como fazer um Cd que fale do
folclore, sem cantar "Riacho de Areia"? A cantiga, de domínio
público, é passagem obrigatória na "travessia" pelo universo mágico
das Geraes – tão simbólica quanto a própria palavra – Travessia - que encerra o
romance icônico, Grande Sertão: Veredas. Para cantar Riacho de Areia, Erick
Castanho optou por simplicidade e sentimento
aos versos sumamente sonhecidos, o "sentimento" profundo que evoca as
coisas da terra, sem muitos floreados instrumentais. Mas houve espaço para
criação: compôs um interessante "retalho" com "Rio", do
cantador Luiz Salgado, participação indispensável no disco e tudo isso
entremeado com versos declamados pelo poeta coração do Brasil, o impagável e
impressionante João Bá! Como diria o próprio Bacurau Cantante: “Ficou bunito
que só vendo!”
O transculturalismo, as inúmeras referências evocadas por
Érick, a exemplo de Dércio, reuniu mais de 30 músicos, num todo harmônico. Linda
homenagem ao andarilho agregador que espalhava sementes e chamava todos à roda.
E nessa roda, arreunida especificamente,
não podemos deixar de mencionar Kátya Teixeira e João Arruda (os demais músicos
nos desculpem).
O disco de Érick Castanho
– nome de batismo Érick Guimarães França – culmina, enfim, uma existência
musical fruto da convivência cotidiana não só com as coisas do folclore –
folias, congadas, toadas - mas também do
blues e do rock, enriquecendo sua experiência como músico, moldando-lhe um
estilo, provando que a boa musica ultrapassa fronteiras e preconceitos, enriquece
a vida: a Arte, notadamente a musical, talvez venha a ser o “Alvorecer”
inevitável, tal como escreve no texto do encarte seu parceiro musical e pai,
Aldo França.O alvorecer, a música e o texto, é um chamado, um aviso: é nossa
inevitável oportunidade. O que pode o artista,
num mundo passando por profundas, rápidas e aparentemente indolores mudanças,
no rastro da globalização, seu brilho reluzente e suas falsas promessas de
democracia definitiva? (o grifo em itálico é por minha conta e risco).
Talvez seja característico da própria democracia sua
permanente instabilidade e deve ser melhor que a encaremos sempre assim. Num
mundo assim, fortemente contrastado por dualidades, é tentador para o artista
ceder à falsa consciência e assim deixar-se cair na vala comum, deixando de
lado sua verdadeira missão, para a qual recebeu dons além dos reservados aos
comuns mortais: a capacidade de dialogar diretamente com a sensibilidade de
quem o ouve e vê. Ouçamos os poetas, os músicos, deixemo-nos embriagar pela
arte, uma das linguagens de Deus, que todos que habitam abaixo dos céus compreendem!
“O alvorecer é a luz
que vem sobre a escuridão...
Não há como impedir o
amanhecer de um novo dia.
Quando chega a ‘hora’,
os pássaros começão a cantar
e os primeiros raios
de luz dão as cores no horizonte
antecipando o sol que
vai nascer.
E do despertar para a
luz de um novo tempo
é inexorável!
O nosso mundo, nunca
mais será o mesmo.
A continuidade da vida
humana na terra exige
uma mudança radical
dos costumes e na sua postuta
no seu habitat planetário
para o prosseguimento da vida.
Cada ser é responsável
pelo seu próprio Amanhecer...
É inevitável!...
Vejam os sinais...
A luz do conhecimento
já ilumina todo o caminho.
Não há como
retroceder!”
(Aldo França)